XIX- Lucília e Thierry

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Sabe de uma coisa que eu detesto? É perder a noção do tempo! Se fico sem ver que dia é hoje ou amanhã por um bom tempo, eu me perco, e perco a contagem dos dias. Eu só sei que agora já são 267 dias. Estamos em março, segundo Thierry. As coisas não estão indo muito bem, e sinto que eu fiz algo muito errado. Preciso voltar ao mês passado, no fim do mês, acho. Judite disse que ela vai ficar conosco a partir de agora, pois a outra psicóloga havia se demitido.

"- Ela vai trabalhar em uma clínica particular."- Judite me disse na última consulta que tive.- " Eu não sei se volta, mas agora eu estou contratada de verdade."

Fiquei exultante. Gosto muito da Judite, e sei que ela vai me ajudar a sair daqui o mais rápido possível. Eu só fiquei muito, mas muito chateada, com uma coisa que ela arrumou. 

"- Ana, eu preciso te pedir uma coisa, sei que não vai gostar, mas vai ter que concordar."

"- Sim, o que foi?"

"- Quero que divida o seu quarto com Vera."

Vera?! Ah não, aí já seria demais. Eu detesto ela, e ela não gosta de mim também. 

"- Por que não com a Maggie?!"

"- Porque você e a Maggie sofrem do mesmo problema, e não quero que vocês acabem regredindo no tratamento."

Nós não iríamos "regredir no tratamento", até porque Maggie e eu temos um acordo acerca do nosso problema com auto-mutilação. Mas não quis falar sobre isso, eu estava mais preocupada em dividir o quarto com Vera, do que pensar em meus problemas.

"- Mas por que eu tenho que dividir o quarto com a Vera?"

"- Teremos uma paciente nova por aqui, e ela está sofrendo muito. Ela tem esquizofrênia, igual o Adrian, só que está em um estágio mais avançado. Eu não queria deixá-la na fila esperando, até porque ela pode acabar matando alguém, ou se matando."

"- Como assim?"

"- A família pede encarecidamente minha ajuda, vai fazer uns dois meses. Eles não tem dinheiro suficiente para uma clínica particular, e estão esperando na fila para poder internar a garota aqui. E então pensei: porque não alguém dividir o quarto? Muitas clínicas fazem isso, e até ajuda no tratamento."

Se ajuda, porque então não posso ficar com Maggie? Eu tentei convencê-la de todas as maneiras, choraminguei, fiz que nem criança. Não adiantou. No outro dia, Vera chegou de cara amarrada na porta do meu quarto.

"- Espero que não esteje me esperando com uma faca."

Vera as vezes tem um tom irônico que me irrita muito. Como eu não sou nem um pouco mal educada, dei um "bom dia" sorrindo, e a convido para entrar em meu quarto. Ela traz as coisas dela junto, e dou graças aos céus de que são poucas. Ela olha em volta procurando alguma coisa.

"- Ué, quedê a cama?"

"- Acho que ainda irão colocá-la aqui."

Ela vai direto ao armário embutido na parede, arrasta os meus macacões para o lado, e coloca na prateleira onde eles estão, os dela. Embaixo, coloca seu único par de tênis e uma bolsa, que não sei o que é.

"- O que tem nessa bolsa?"- pergunto.

"- Ih, agora quer expranar é? Tem nada do seu bico não, num mexe aqui!" 

Nas coisas dela eu NÃO podia mexer, mas nas minhas, ela "podia". Quando eu saía do meu quarto, e depois de um tempo voltava para lá, volta e meia via minhas coisas emboladas dentro da gaveta ou do armário, e tenho certeza de que ela mexeu ali. Espero que ela não ache este caderno, senão, não gosto nem de pensar... Demorou uns três dias para que eu me acostumasse com o jeito dela, e confesso, que ainda não me acostumei, mas estamos menos implicantes em relação a uma e outra. Nos primeiros dias, nós brigávamos o tempo todo. Ainda mais por causa da minha cama. Minha cama fica embaixo da janela, e ali é o local mais fresco para se dormir neste calor, visto que o ventilador não funciona direito. Eu durmo com a janela aberta, e a brisa passa por todo o meu corpo durante a madrugada. Colocaram a cama de Vera na outra parede, de frente para a minha. O problema, é que ela queria a MINHA cama.

380 dias- Diário de um hospícioOnde histórias criam vida. Descubra agora