XII- Pequenos "reparos" 1: algumas considerações sobre o meu caderno

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Fiquei novembro inteiro sem escrever, e agora estamos em dezembro. Somando tudo: os 130 dias da última vez que escrevi + as duas últimas semanas de outubro + os 30 dias de novembro... Perdi as contas, droga! Sei pelo menos que são 180 dias, exatamente contando com hoje. Fiquei muito tempo sem escrever, entrei em um estado meio "caótico" do meu ser, algo relacionado a uma depressão, segundo a psicóloga do local. Sim, PSICÓLOGA, e não psiquiatra, como venho escrito ao longo deste caderno. Eu não sabia a diferença entre as duas áreas médicas, e agora eu sei. Um psicólogo apenas auxilia as pessoas com problemas mentais (entre outros "sofrimentos mentais", como eles chamam), a melhorarem sem o uso de remédios pesados. Já o psiquiatra auxilia o tratamento de casos mais sérios, e prescreve remédios bastante pesados. Minha psicóloga prescreve meu remédio, mas ela disse que meu caso é mais "leve" diante de outros casos da clínica, e que agora têm me auxiliado em um tratamento que reduza o meu consumo de medicamentos. Aqui na clínica existem uma psicóloga, e dois psiquiatras, que cuidam do tratamento de cada paciente. 
Bem, voltei a escrever por várias razões. Essa semana Maggie pegou este caderno sem o meu consenso, e a encontrei lendo-o de tarde, no jardim, perto do velho chafariz. Parecia interessada na leitura, mas contorcia o nariz o tempo todo. Fiquei olhando quieta ela lendo, por um tempo, mas ela percebeu que eu havia chegado. Então, ela se sentou na grama, fechou o caderno, e mandou que eu sentasse junto dela. Mandou, Maggie nunca pede nada de bom grado: ela manda. Eu pedi o caderno de volta, mas ela se recusou. 

"- Achei bacana seu caderno, mas tenho considerações a fazer.

-Maggie, pare de ser implicante e apenas me devolva?!

-Primeiro: isso está mais parecido com um conto de fadas, do que com o mundo real. Segundo: Natasha não morreu de turbeculose, senão você também tinha pegado, e as enfermeiras também. Tuberculose é contagioso.

-Maggie...

-Terceiro: por que parar de escrever? Aqui, você diz que quando relê o caderno, não encontra sentimento em suas palavras, não consegue encontrar a realidade tal como é. Mas para mim, está repleto dos mais variados sentimentos, a partir de sua visão do seu real. SEU real, não meu, e nem de mais ninguém."

Quando Maggie começou a falar sobre meu caderno, várias coisas passaram a fazer sentido na minha cabeça. No meu caderno, eu falo o que eu vejo, sobre a minha concepção de mundo. Só que minha concepção de mundo, é mais parecida com as "tragédias gregas", algo voltado para o "mito", "fantasia". Não que eu escreva uma fantasia, mas o que me move são as minhas fantasias, minha irrealidade. Eu escrevo de um jeito romântico, hora sombrio, depende muito do meu humor. Dessa forma, consigo controlar os meus problemas. 
Eu sou bipolar, e sofro de automutilação. Eu me corto quando me encontro em um estado calamitoso, e quando as coisas ficam ruins para mim. Isso acontece sempre que fico muito estressada. Por isso, a psicóloga manda que eu tome calmantes. Em uma consulta com ela, eu percebi o quanto minha vida antes da clinica me estressou, e isso fez com que a doença se agravasse. A minha mãe, infelizmente, foi a grande causadora dos meus problemas. Quando eu perdia a "linha", eu saía fora de mim, e era comum eu acordar meio desmaiada no chão, sem lembrar do que havia acontecido. E aí, eu escrevia. Sim, alguma coisa ficava presa em minhas memória, e eu acabava inventando ficções para contá-las. Tudo sem perceber. De qualquer forma, escrever meus livros era a forma pela qual eu me acalmava, e involuntariamente, lembrava de coisas que eu esquecia quando perdia a razão. Minha mãe achava que eu "estava possuída pelo diabo" toda vez que escrevia. Mas na verdade, eu estava colocando o sofrimento para fora, e aquilo era a forma pelo qual meu cerébro encontrou para se organizar. Quanto as minhas tentativas de suícidio: tudo não passava de meu transtorno bipolar, e para falar a verdade, eu nem lembro muito de como foi. 
Percebi o quanto eu mudei, à medida que fui convinvendo com pessoas novas, em um ambiente totalmente inusitado. Ouvindo Maggie reler o primeiro capítulo deste caderno, pude sentir um ar sombrio em minha escrita. Eu deveria estar com raiva de ter sido jogada aqui pela minha própria mãe. Sabe, eu acho que minha mãe não gosta de mim. Desde pequena, ela nunca me tratou muito bem. Só dizia que eu deveria ser educada com uma mulher de Deus, e me prendia dentro de casa, não deixava eu fazer muita coisa... Mas nunca disse que me amava, e até agora, ela também não deu notícias. 
Agora, vou falar de Maria Carolina, antiga Natasha. Bem, ela não morreu de tuberculose. Eu entendi errado, pois toda vez que ia vê-la em seu quarto, as enfermeiras ficavam cochichando o tempo inteiro, e não me diziam o que ela tinha. Eu entendi errado, tentando escutar o que elas haviam me dito. Eu não sei ao certo do que ela morreu, mas tenho uma certa concepção sobre tal assunto, e acho que Maria morrera de AIDs. O que me surpreende, é que ela era muito nova para morrer disso, mas pode ter sido um caso raro também. Não sou médica, e nem sei como diagnosticar as pessoas. Mas sei que ninguém vai me dizer o que decerto houve com Maria. Tentei ao máximo possível reprimir em minha escrita, o estado em que a vi várias vezes durante a doença, afim de apenas ter os bons momentos para me lembrar. Era muito difícil ver Maria quando estava no quarto. As enfermeiras são bastante rígidas aqui, e raramente me deixavam vê-la. Eu insistia sempre, então uma delas cedia, mas ninguém da diretoria da clínica podia saber. Quando um paciente está doente por aqui, eles ficam de cama, trancados em seus quartos. Os únicos que podem entrar, são os enfermeiros, e os parentes que caso venha os visitar. As regras da clínica são muito exigentes, e não devem ser quebradas.
Por falar na clínica em que estou, mal falei sobre ela direito.

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