XIII- Pequenos "reparos" 2: algumas considerações sobre meu caderno

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Hoje foi um dia cansativo. Fiquei até mais tarde ontem pensando sobre este caderno, sobre tudo o que Maggie disse... Eu não deveria ficar preocupada com isto, mas eu fico, pois isto aqui é algo especial para mim. Meu caderno, um dia, não vai ser somente "meu caderno". Quero mostrar a todos, um dia. Isto aqui é um conjunto de relatos sobre o meu tempo presente, e com certeza, servirá de guia sobre este tempo para muitas pessoas. Também quero ajudar muitas pessoas com isso. Assim que sair daqui, eu pretendo publicar este caderno. 
Ontem eu falei sobre alguns "reparos", ou seja, eu fiz uma espécie de análise sobre tudo o que eu escrevi até agora. Hoje eu quero continuar essa análise. Por onde eu posso começar... Ah, sim! Eu tenho o costume de relatar aqui a vida de alguns pacientes. Quero justamente falar de minha relação com eles. Depois que escrevi sobre Adelaide (lembram?), ficou difícil conversar com ela. Ela é estranha, digamos. No começo queria ser minha amiga, e eu botei fé nessa amizade, mas depois ela se distanciou por completo, e praticamente não lembra de mim. Quando a vejo, eu tenho vontade de chamá-la para ficar com o "bando", mas o "bando" parece não querer ela ali. Adelaide realmente é uma pessoa em que não podemos confiar muito. Ela mente, cria coisas que só estão na cabeça dela, esquece muitas coisas... Mas eu não posso julgá-la, pois como ela, eu também tenho problemas, e eu sempre falo isso para Thi e Maggie. Adrian não liga muito. Ele vive no "mundo da lua", como diz Maggie. Aproveitando o gancho, Adrian é uma criatura amável, e eu tenho descoberto isso a cada dia que se passa. Apesar de ser silencioso, e um pouco revoltado, ele se importa com todos nós, e ama muito irmão. Ele não demonstra nada disso, mas eu percebo nos olhos dele, e toda vez que o vejo conversando com Thierry. O dia da carta é o mais divertido, pois Adrian faz uma coisa muito engraçada. Eu fico muito abalada no dia da carta, pois até hoje enrolo para escrever a carta que tanto quero, mas eu fico ansiosa para ver o que Adrian fizera. No dia da carta, ele escreve para o próprio irmão. Ele faz uns desenhos, e escreve. Eu sempre peço para Thierry me mostrar, pois acho que Adrian desenha muito bem. Eu posso ver a alma dele naqueles desenhos. E ele se afeiçoou a todos nós. 
Apesar de escrever muito pouco sobre Adrian, ele sempre está. Não tenho muito o que dizer dele, pois sua presença é silencioso, e um pouco pertubada, mas eu ainda sim, gosto. Um dia, ele me perguntou, bem baixinho, se eu não sentia medo de estar ali. Eu pensei na pergunta, e acabei respondendo errado a ele. Eu disse que não tinha medo de nada, mas ao me deitar na cama para dormir, eu pensei melhor na questão e percebi que tinha mais medo do que podia imaginar. Medos subjetivos, ocultos, e que não podia perceber. Eu tinha medo de mim mesma, do meu interior. Medo de morrer, medo de falar com minha mãe, medo de não encontrar ninguém que me amasse... E assim que eu encontrei Adrian, no outro dia, eu o respondi de outra forma. Mas de uma coisa, eu tenho certeza: eu não tenho medo de estar aqui. Não tenho medo de pessoas com problemas, pois eu também tenho o meu, e todos nós temos. Não tenho nojo, aversão e nem preconceito. Penso que se respeitássemos uns aos outros, o mundo iria ser bem melhor, mas é uma pena que isso ainda esteja muito longe de nossa realidade. Há dias em que o Adrian fica muito triste, e quando falo triste, é triste mesmo. Percebe-se até em seu modo de andar. Nesses dias, ele fica muito silencioso e distante. Uma vez, perguntei a ele o por quê de ficar triste por uma situação que havia se passado anos atrás. Lembro direitinho o que ele me disse:

"- É incontrolável, Ana. Eu queria muito mudar minha situação, mas não tenho controle sobre mim. Prefiro ficar aqui então, pois assim eu evito de fazer alguma bobeira mundo afora." 

Eu o entendo perfeitamente. Alguns problemas são realmente incontroláveis, ou alguns momentos, digamos. Eu também não consigo ter controle sobre mim, mas meu problema ainda consigo "enganar" por um bom tempo, lá fora. Sim, lá fora. Aqui dentro é um esboço da vida real. Lá fora é bem pior, o "inferno na terra", como dizia uma amiga da minha igreja. As pessoas sãs ditam as regras, os padrões. Quem não se encaixar, danou-se. E nós, meio loucos, meio humanos, somos seres que deram errado, mentes incontroláveis, um pouco manipuladoras e depressivas. Não vou nos colocar para baixo, e muito menos dizer que somos pobres coitados. Há muitos de nós que são piores que o próprio diabo, e que sabe muito bem ter auto-controle, mas se aproveita do defeito para gerar defeitos. Este é o caso de Vera.
Vera é nova aqui, e não a conheço muito. Já disse que não gosto muito dela? Pois é, se disse, repito: é a única pessoa que realmente eu tenho aversão. Até a minha mãe consegue ser menos ruim que ela. Eu amo a minha mãe, acima de tudo. Mas Vera, não consigo gostar dela. Deus que me perdoe! Queria realmente, em minhas orações, rezar de coração aberto por ela, assim como fiz com Maria, e faço com Maggie, Thi e Adrian. Até por Joseph eu rezo! Mas por ela, eu engasgo. Ela não conseguiu ter compaixão por uma criança! Mas eu entendo porque eu não gosto dela. Eu sempre fui muito ligada as crianças, e depois que vi que Vera não gosta de crianças, eu criei uma barreira em minha interação com ela. Preciso repensar isto, fazer um esforço. Ela precisa de mim, eu sinto isso. O que falta a Vera é um pouco de amor no coração, afastando a vaidade e o orgulho. Eu também sou orgulhosa, pois se eu não fosse, eu estaria ali, de coração aberto para ajudá-la. Eu também teria perdoado minha mãe, mandado uma carta para ela, me conformado com a morte de Maria... Eu sou orgulhosa. Vera é o dobro. Temos isso em comum. Sinto que ela é sozinha, e isso a deixa amargurada com a vida. 
Joseph é engraçado. Eu tinha muito medo dele, e confesso ainda ter um pouquinho. Mas eu vejo uma criança dentro dele. É engraçado o jeito com o qual ele lida com as coisas, interage com as pessoas. Eu tento incluí-lo no grupo, mas Maggie perde a paciência com ele muito rápido. Ela detesta a presença de Joseph. E para evitar brigas, tento conversar com ele longe de Maggie. Joseph hora age como alguém normal, hora como alguém anormal. Eu nunca consigo mantêr um dialogo com ele por mais de cinco minutos. Ele para do nada, começa a prestar atenção em um objeto qualquer, ou até em uma pessoa. Daí ele não escuta mais nada, e sai atrás daquilo que estava vendo. Eu acho engraçado, mas tenho medo mesmo assim. De vez em quando, eu trago uns papéis para ele, e ele fica brincando com os números, que é o que ele mais gosta. Fico pasma com a habilidade matemática da qual ele detém. Uma pena, que está preso aqui, sem ninguém que o ame e cuide de seu ser. Se eu pudesse, eu o adotava, mas sei lá...
Maggie... Esta é uma criatura engraçada, e as vezes, irritante. Tem uns "bordões" ótimos, dentre os quais:

"Vou te encher de porrada."
"Pode morrer, eu não ligo. Adoro gente morta."
"Olha, eu odeio vivo. Mas se você morresse, com certeza viraria sua amiga."
"Fica tranquilo que não vou te prender no meu armário."
"Vem aqui, para eu quebrar a sua cara."

 Dentre 100 palavras que ela fala, 99 se referem a morte, pancadaria e afins. Ela é estressada, e revoltada. Desde que fez amizade comigo, as enfermeiras dizem que ela ficou mais "relaxada". Isto porque ela vive me ameaçando pegar na porrada ou de morte. Mas sei que ela não teria coragem. Eu deixo ela falar, pois esse é o modo com o qual ela alivia a tensão. E acho engraçado. Me seguro para não rir, mas tem horas que não adianta. E quando isso acontece, ela fica magoada e saí para que eu não a veja chorando. Maggie também chora, só que escondida. A única vez que ela chorou na minha frente foi aquele dia, quando o pai dela morreu. Ela tenta ser forte com o seu jeito frio e agressivo, mas sei que ela não é assim. Quando alguém a machuca, ela se machuca. Temos o mesmo problema: automutilação. Só que o dela é bem pior, pois ela adora sangue, e ver o seu próprio sangue lhe dá prazer. Acho isso um filme de terror, e sempre fico de olho para que ela não caia no mesmo erro. Nós fizemos um trato: não vamos nos cortar, e vamos nos vigiar para que isso não aconteça. Ela se tornou uma irmã para mim. Quando Maria morreu, eu fiquei bastante depressiva. O jeito de Maggie me ajudou a levantar os ânimos. Torço por ela, de coração, e não quero perdê-la. 
Já está tarde. Mas sinto que falta falar de alguém ainda. Acho que é o Thi... Ah, o Thierry! Como pude me esquecer? Aqueles olhos azuis e os cabelos encaracolados... Ele é encantador, sensível, não tenho palavras para descrevê-lo. Meio louco, meio confuso também. De tanto tempo que passa aqui, acabou se moldando um pouco a loucura do irmão. Ele tem um "cacoete": tem a mania de tocar o polegar com o dedo indicador quando está muito tempo parado. Eu não sei o que causa isso, e nem porque ele faz isso, mas sei que isso é algo estranho. Ele também é um pouco agitado, e quando fica nervoso, não para quieto. Anda de um lado para o outro, tenta se comunicar conosco... Maggie diz que ele gosta de mim. Maria Carolina dizia a mesma coisa. Eu não acho. Se ele gosta, gosta como amigo. Até porque, como já disse, se ele gostasse, eu não o corresponderia. Não tem cabimento! Eu sou toda problemática, não sou nada atraente, toda envergonhada... Ele é um verdadeiro príncipe encantado, só que mudo. E depois, fico imaginando a gente casado, e o quanto ia ser difícil nos comunicarmos. Ah, sei lá. Mas que ele mexe comigo, mexe. Um pouquinho. Melhor eu pôr um ponto final nesse assunto. 
E agora, eu devo dormir. Amanhã é um longo dia, apesar de ser a mesma coisa  que os outros. Eu quero muito sair daqui, muito mesmo. Não tem mais como aguentar. Bem, o minímo que posso fazer agora é descansar. Boa noite, meu querido "bando". Até amanhã. 

380 dias- Diário de um hospícioWhere stories live. Discover now