XIV- Quem nós somos?

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Já fazem 5 dias desde a última vez que escrevi, então já são 186 dias. Eu reli e reli umas 4 vezes este caderno, afim de conferir se faltava explicar mais alguma "gafe" que eu cometi, mas ao que me parece, até agora, está tudo certo. Bem, acho que está tudo certo. Sabe, eu fiquei aqui pensando: no ínicio, a ideia de escrever este caderno era para que eu pudesse contar a história de vários pacientes, mas agora vejo que este caderno virou um poço cheio de histórias minhas e de meus amigos, além das histórias dos pacientes, claro. Não, acho que não tem problema algum ser assim, até porque eu não faço praticamente nada o dia todo por aqui, e prestar atenção nos detalhes do dia é o meu passatempo favorito. Gosto de acordar e ir direto saber como está o clima lá fora, e também de ver meus amigos no refeitório. Aqui, nós esperamos por algo que não sabemos o que é, pois o tempo parece passar as vezes rápido, e as vezes devagar, fora que ficamos ansiosos por algum acontecimento importante que nunca parece chegar. Não há muito o que se fazer, apenas esperar, esperar e esperar...

Se tem uma coisa que acho engraçado aqui no Santa Barbára, é que as pessoas sonham em sair deste lugar como se fosse algo fácil e tão perto do quanto imaginam. Infelizmente não o é. Também não tenho mais usado o termo "clínica de reabilitação" para designar este lugar. Já vi outras clínicas, e aqui de reabilitação não há nada. Isso aqui parece uma mistura de manicômio com uma clínica para deficientes primários. É muito estranho, mas vindo do estado, não dúvido que tenham feito essa bagunça de propósito. Bem, pelo menos não estou num manicômio de presos malucos, ali sim seria bem pior. Mas enfim, essa semana foi de muitas reflexões. Hoje é domingo, e muitas coisas me voltaram na cabeça: minha infância, meus amigos que deixei lá fora, a vida que deixei lá fora... E tudo porque essa semana tomou uma forma nostálgica, não só para mim, mas para Maggie e Thi também. Tudo começou por causa de uma orquestra de jovens que trouxeram aqui na terça-feira, para tocar músicas de natal para os pacientes. Eu adoro natal, e ver aqueles jovens tocando me lembrou os ensaios que fazíamos na minha igreja, para apresentarmos no culto especial de natal. Os jovens se reuniam em um grupo, e as crianças em outro. Nós ensaiavámos para nossas apresentações, e depois, ensaiavámos as crianças, e todos participavam de uma peça juntos. Sempre quis ser a Maria, mãe do menino Jesus, mas nunca conseguia o papel. Eu era um pouco timída ( se bem que a Maria não falava mais que duas frases), e por isso não me colocavam como um dos personagens principais. Acabava virando figurante mesmo. Mesmo assim, eu gostava do clima do natal, apesar de eu não ganhar presentes da minha mãe, eu gostava daquele dia. Era o único dia que eu via a família reunida, que eu via minha tia e minha avó, e meus primos todos. A gente fazia muita bagunça. Lá em casa nós não tinhamos o costume de montar uma árvore de natal, e nem colocar enfeites pela casa. Minha mãe dizia que era desnecessário, que isso era invenção de gente "mundana e medíocre", que pensava no natal só como uma data de comprar enfeites e presentes, e não de comemorar a vinda do Salvador. Também não entendia o significado de tantos enfeites e árvores e talz, mas eu achava aquilo tão bom e alegre, que eu tinha vontade de montar uma todo ano. As pessoas da minha igreja nunca proibiram isto, e muitas faziam enfeites bem bonitos e reluzentes. O problema era a minha mãe.

Minha tia Maria, vendo que eu sempre queria participar da "enfeitação de natal", deixava para montar a árvore e demais enfeites na noite do dia 24, quando eu ia para a casa dela. Ela começou a fazer isso quando eu tinha mais ou menos uns 8 anos, ou 9 anos. E até hoje eu faria isso, se eu não estivesse aqui. Sim, era muito bom tudo aquilo. Na escola, uma vez, fiquei pensando nesta questão dos enfeites de natal. Não me lembro ao certo, mas comecei a discutir tal assunto com uma professora minha, que era católica e catequista em sua paróquia. Ela me explicou que na religião dela, cada enfeite, e até mesmo os presentes, tinham um significado para eles, e por isso davam importância a cada um na data festiva. Na minha religião também existe isso, mas não damos muita importância aos tais, pois para nós, o mais importante mesmo no natal é Jesus. Sei que muitos evangélicos não comemoram o natal, pois dizem ser uma cultura ocidental e capitalista, e porque Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro, como conta no nosso calendário. Mas isso depende muito da linha de cada evangélico. A minha igreja, apesar de ser bem tradicional, ainda incentiva um pouco a prática natalina. Há igrejas envangélicas mais liberais, outras totalmente contra algumas datas.

380 dias- Diário de um hospícioDonde viven las historias. Descúbrelo ahora