VI- Paredes coloridas

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Se passaram dois dias. Agora são 63 ao todo. Dessa vez não tardei a escrever pois, como já vos disse, quero muito escrever sobre o pintor e o esquizofrênico do quarto 24. Sempre fiquei curiosa sobre o porquê dos dois poderem residir o mesmo dormitório, e o resto não. Pelo que eu saiba, o pintor é mudo, e não penso que ele tenha outro problema a não ser isso. O esquizofrênico sabe falar, mas não fala "coisa-com-coisa", como diria Maggie. Por falar em Maggie, teve outro surto antes de ontem, e se cortou toda de novo. Ouvi as enfermeiras dizerem que até os órgãos genitais ela estava a cortar e machucar. Realmente, ela passou dos seus limites de loucura. 
Natasha está de cama ainda, trancafiada em seu quarto. Perguntei a enfermeira que está cuidando dela, Catarine, se ela estava melhor ou pior, e esta me respondeu:

"-Não tenho como avaliar ainda... Parece uma gripe comum, mas quando penso que está melhorando, logo piora."

Temo que esteja assim, por causa da AIDs. Mas eu nem sei quais são os sintomas desta doença! Pode ser que ela tenha outra coisa... Prefiro não descobrir, pois se eu me deparar com algo pior, irei entrar em profunda depressão. Natasha sempre está comigo, me fazendo rir, e aproveitar a minha vida, mesmo estando neste lugar deprimente. É a única que pessoa que tenho coragem para contar meus segredos mais profundos. E o que sinto por ela... O que sinto, não tem explicação e muito menos cabimento. Penso eu que seja amor. 
Quando ela fica doente e "some" praticamente, eu me sinto tão só e vazia, que fico sem saber o que fazer. E para não entristecer, eu arranjo algo para escrever ou ler. Ontem mesmo já fui atrás da história de vida dos dois pacientes que habitam o quarto 24. No café da manhã, tentei me aproximar deles, mas as enfermeiras estavam rondando o refeitório, e então resolvi não me sentar com eles, pois elas iriam reparar. Sim, as enfermeiras ficam de olho na gente 24 horas do dia, e nem parecem que dormem. Sair do quarto de noite é algo quase que impossível, e poucos tem permissão para isso. Essas regras todas dentro desta clinica de reabilitação são impostas aos médicos responsáveis pelo local, afim de nos proteger e ajudar. Algumas regras são até coerentes, mas outras... Outras não tem" pé nem cabeça". 
No horário da tarde, quando saímos para tomar sol, resolvi bater no quarto 24 e ver se tinha alguém lá. Por sorte, havia sim: o pintor. Comecei a falar com ele esperando resposta, mas tinha me esquecido de que ele era mudo. Ele me convidou a entrar, e fechou a porta. Fiquei abismada com as paredes do quarto dele: eram todas coloridas, cheias de cenas de natureza, pessoas, pássaros... Era praticamente uma obra de arte! Me deu alegria de ver tanta cor em um lugar onde o preto e branco predominavam. Ele puxou uma cadeira, e fez gesto para que eu me sentasse. Perguntei:

"-Como se chama?"

Ele falou em libras, mas eu não sei ler libras! Então, ele ficou sem saber o que fazer. Tentou me dizer por mímica, mas não funcionou. Perguntei se ele sabia ler e escrever, e ele balançou a cabeça dizendo que sim. Perguntei também, se ele tinha algum papel e lápis, mas ele fez com o dedo que não. Fiquei sem saber o que fazer, até que ele se levantou da sua cadeira, foi até a mim, pediu que eu me levantasse e me virou de costas. Com o dedo, desenhou as letras do seu nome em mim: T-H-I-E-R-R-Y. Na minha mente, juntei tudo: Thierry! Era esse o seu nome! Quando o repeti em voz alta, vi os olhos do pintor. Thierry era um homem bonito, apesar de sua altura. Não era muito alto, tinha mais o menos o meu tamanho: 1,56 metros. Ele dispunha de grandes e belos olhos azuis, pele branca, muito branca e cabelos pretos um pouco encaracolados. Usava o uniforme da clínica, como todos nós usamos: um macacão bege. Mas o macacão dele, tinha manchas de tinta a óleo. Sei que tinta a óleo não sai fácil - e talvez até manche certos tecidos- o que deve ter acontecido com o seu uniforme. Aqui só temos direito a duas mudas de roupa, e se algo acontecer com elas, ninguém nos dará outra. Por isso, tenho o máximo de cuidado que posso com os meus macacões. Os tênis de Thierry também estavam sujos de tinta.
O sorriso dele, é a coisa mais bonita que já vi, e adoro quando ele sorri para mim. Me enche de alegria, e não sei o porquê dele estar sempre alegre, mesmo estando neste lugar horrível e infeliz. Ele começou a conversar comigo, através das palavras que ia desenhando em minhas costas. Eu juntava tudo em minha cabeça, e o respondia. Expliquei a Thierry porque fui até ele ontem, e disse-lhe sobre o diário que estou escrevendo. Ele achou ótima a ideia. Fiquei surpresa, e fui correndo pegar meu caderno e lápis, mas ele me repreendeu, e com o dedo, desenhou novamente o que queria dizer em minhas costas:

380 dias- Diário de um hospícioWhere stories live. Discover now