VII- Auto-retrato

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77 dias... Quem diria, e eu aqui ainda. Mais duas semanas. Sinto que estou adoecendo. Mas como posso sentir isso, sem consultar um médico? Oras, apenas sinto que minha saúde mental está cada vez mais debilitada. Eu me sinto no escuro, sempre procurando a luz. Em um lugar onde as formas não podem ser vistas, e nem as coisas tocadas. Na escuridão, não enxergo nada. Corro, corro e corro. Mas... Do que me adianta correr?! Do que adianta correr, se não há saída? E o pior: do que eu estou correndo ou fugindo? Tenho a sensação de que existe um monstro me perseguindo, e ele parece e não parece existir. Não sei porque me sinto assim, e isso é a pior coisa que alguém pode sentir. 
Minhas visitas à psiquiatra foram diminuídas, então, ela só me chama quando julga necessário. Ela disse que há outros pacientes que precisam de mais ajuda que eu no momento, e que se eu progredir sem a ajuda dela, logo logo vou embora. Eu até fico feliz em ouvir isso, mas fico pensando em Natasha. Como ela vai ficar caso eu vá embora? Eu também não quero ficar longe dela. Até poderia vir visitá-la, só que não seria a mesma coisa. Por falar em Natasha, essa semana ela melhorou. Sua saúde ainda está instável, e ela pode ficar de cama novamente. Não achei ninguém ainda para escrever sobre. Os pacientes parecem estar se escondendo... Se eu não tivesse medo de Joseph, eu até iria atrás dele, mas eu não gosto muito dele.
Semana passada, eu e Natasha resolvemos ir ao quarto do Seu Wilson de novo, para ver televisão. Foi uma forma de comemorar a melhora de Natasha. Natasha agora é super religiosa, mas não fanática como minha mãe. Ela pertence a uma religião diferente da minha: o Catolicismo. Perguntei a ela como ela sabe sobre essa religião, se nunca teve uma, ou se interou sobre uma.

"-Alguns anos atrás, uma freira estava andando com uma outra freira no calçadão de Ipanema, quando me viu passando por lá. Pelas roupas, ela notou que eu era uma prostituta. Eu já sabia um pouco sobre os católicos, pois minha avó era muita religiosa. Minha mãe não quis seguir a religião, e nunca ensinou a mim e aos meus irmãos sobre. Minha avó, quando era bem pequena, me levava á missa, e pelo que me lembre, foram poucas vezes que ela o fez. As freiras me pararam lá, e me olharam com muita compaixão. Me fizeram sentar e contar a minha história toda, como eu tinha ido parar ali... Eu era uma jovem de 19 anos na época. Elas me convidaram a ir morar em uma espécie de "clinica" que tinha em uma fazenda, para drogados, prostitutas e viciados em alcóol. Me disseram que eu ia ter uma vida melhor, e mais feliz lá, junto de Deus. Mas meu vício pelo sexo falou mais alto, e hoje me arrependo de não ter aceitado o convite."

Eu não sei nada sobre o catolicismo, então não falei nada. Apenas a abracei, e mudei de assunto. Sei que Natasha queria falar sobre a religião dela comigo, mas eu não gosto de falar sobre. Eu tenho a minha, sou evangélica, e apesar de toda a loucura da minha mãe, ainda sigo a risca meus preceitos. No outro dia, Natasha me contou que queria frequentar à missa dominical, fazer uma confissão e poder rezar o terço todos os dias. Como sempre, eu fiquei calada.

"-Você nunca fala nada, quando falo sobre isso."

"-Eu não tenho muito o que falar. Não sei nada sobre o catolicismo."

"-Se quiser, eu te ensino..."

"-Não, obrigada."

Ela estava me irritando por causa daquilo, mas eu não conseguia ficar com raiva dela. Nessa mesma semana peguei Natasha conversando sozinha com o motorista, o rapaz que trás as coisas para cá. Eu estava indo para o quarto dela, de tarde, e na hora que ia cruzar o corredor, ouvi a voz dos dois. Então não cruzei-o, mas fiquei parada atrás de uma parede, ouvindo a conversa dos dois.

"-Marcos, eu não quero mais! Não quero, entende? Eu perdi tempo, arruinei uma vida por causa de sexo. Eu sou doente! E você só está se aproveitando da minha doença! Depois, tenho AIDs, e não quero que você a pegue."

"-Mas para isso, a gente usa camisinha..."

"-Basta! Isso é pecado! Já usei muito isso por puro prazer, e por causa disso, nunca construí uma familía, nunca senti o amor de um homem, vindo do coração, e nunca tive a alegria de ser mãe! Sei que sou nova ainda para dizer, e sei que há esperanças de um dia eu sair daqui e ser feliz, com um homem que me ama, filhos, uma dignidade."

380 dias- Diário de um hospícioWhere stories live. Discover now