IX- Adeus, Maria.

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Hoje eu abri a janela do meu quarto, e o ar que entrou no meu dormitório foi diferente do usual. Eu arrumo minha cama todos os dias, não só por hábito, mas para mostrar as enfermeiras que eu estou bem a cada dia que passa. Menos hoje, e talvez nunca fique bem. Esses últimos quinze dias que se passaram me deixaram saturada, com muita tristeza. Foi a primeira vez que vi a morte de perto, e a morte da pessoa que eu amava. Sim, ela se foi, e se vocês soubessem a dor que estou sentindo ao escrever isso aqui, e a quantidade de lágrimas que estão escorrendo dos meus olhos neste exato momento, saberiam tudo o que eu estou passando. Bem, eu tenho que contar o que houve; preciso contar tudo: desde os seus últimos dias doentes até seu último suspiro. Só assim, eu poderei talvez tirar essa dor amarga do meu coração.

Estou a muitos dias sem vontade de dormir, comer... Toda vez que deito para descansar, de noite, eu lembro de Natasha: eu no quarto dela, proseando, rindo, bem perto de seu rosto pálido, sentindo seu hálito quente sobre mim. E nós ríamos, ríamos baixinho, contando segredos uma para a outra. Nunca senti tanta tristeza na minha vida, como sinto agora. Nunca. A dor no meu peito... É algo que eu não desejaria para ninguém, nem para meu maior inimigo. Eu adoeci, e dessa vez, eu não sei se quero melhorar. Mas eu tenho, eu tenho que melhorar, pois há pessoas que precisam de mim aqui.

Já sentiram seu coração dar pontadas? Já sentiram ele bater tão rápido em meio às lágrimas, mas tão rápido, que parece que ele vai sair de você, e deixar apenas a carcaça, que é o seu corpo? Sinto isso todos os dias, e mal consigo respirar. Ao acordar, eu lembro de todas as coisas boas, e passo o dia inteiro nostalgicamente a lembrar. Mas fim da tarde, perto da janta, eu me tranco no meu quarto, e aqui, desabo a chorar todas as minhas tristezas. Eu estou com medo de mim mesma, pois meu monstro interior, aquela sombra do canto mais escuro da minha cabeça, está ressurgindo. E esse monstro flagelou meu corpo. 

Logo no começo de Setembro, na primeira semana, Natasha piorou de vez. Natasha não! Maria, Maria Carolina. Maria adoeceu, e muito. Foram duas semanas agonizantes para ela, e principalmente, para mim. Fiquei ao lado dela dia e noite, sem piscar, com medo de que o sopro do vento soprasse para longe de mim, a vida dela. Eu a amei, como ninguém a havia amado. Eu a amei, como nunca amei ninguém. E ela me amou, como nunca ninguém me amou também. Mas esse amor, não era como eu pensei que fosse de início, e me arrependo disso. Eu amava Maria como amaria uma irmã de sangue! Só agora posso enxergar, e me arrependo de muitas vezes, tê-la ferido e magoado com uma percepção de meus sentimentos errada. O sonho dela, era sair daqui, e casar-se com alguém que a amasse, ter filhos, uma casa... O coração dela guardava com muito zelo esses sonhos de garota, que infelizmente ela esquecera por um tempo, e para se salvar. Maria foi deixada por todos nesse mundo, e sua loucura piorou sua vida. Mas eu não quero lembrar dela como uma prostituta, e não quero que todos lembrem dela como uma mulher da vida, viciada em sexo. Maria para mim foi apenas levada pelas coisas desse mundo, pelas coisas ruins que o ser humano tem a oferecer. 

Se eu pudesse, eu parava o tempo. Sei que estou aqui a pouco tempo, e nem um ano faz que a conheci. Mas meu coração se afeiçoou a ela, como nunca se afeiçoou a ninguém. Ela era minha "igual", minha companheira, minha irmã mais velha e vivida. O quarto 30 nunca foi tão vazio e triste como é agora. Passei as duas primeiras semanas de setembro ali, cuidando de Maria com todas as minhas forças, dedicação e carinho. Eu tinha esperanças de que ela ia melhorar. Mas o que ela tinha, já havia tomado o corpo dela. As enfermeiras haviam me proibido de ficar lá, mas eu me zanguei com elas, e consegui que me deixassem ficar lá. Eu parecia uma leoa. Eu banhava Maria, colocava suas roupas. Ela mal conseguia falar direito, e por isso, só sorria. Fazia um grande esforço para andar. Seu corpo estava muito fraco, e ela estava muito magra. A pele dela não estava saúdavel como a minha. Eu a levava para almoçar e jantar no refeitório. Pedi ao bando para motivarem Maria, e não dizerem em momento algum, que ela estava mal. Eles concordaram comigo, e toda vez que eu aparecia com ela no refeitório, eles sorriam e diziam que ela estava maravilhosa e muito bem. Mas Maria Carolina sabia que não estava, e como não queria desapontar-nos, ela sorria e se utilizava de todas as suas forças para falar, se mover... 

380 dias- Diário de um hospícioWhere stories live. Discover now