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Marcela acordou dentro de uma jaula cuja grade era feita de grossos troncos de madeira. Deitada no chão, sentiu como se algo se movesse no subterrâneo.

-Está sentindo? Ela só fica agitada assim quando está com fome. E faz um mês que ela não se alimenta. –disse Natasha, sentada ao seu lado, dentro da jaula. -Sabe o que mais me orgulha, irmãzinha? É que eu não sinto nenhum medo. Hoje apenas uma de nós terá a honra de ser devorada por Nascár. E vai ser você. Nascár sempre come aqueles que se recusam a fazer o rito de passagem. E eu não poderia nem mesmo ter o meu rito. Só os primogênitos tem esse direito. E você me tirou esse direito quando nasceu um ano antes de mim.

-Mas você tomou meu lugar no rito de passagem, Natasha. Foi pelas suas mãos que papai morreu.

-Você sabe muito bem que não é assim que as coisas funcionam por aqui, irmãzinha. Eu não tive um rito de passagem. Eu apenas impedi que o seu acontecesse.

-Não precisava ter impedido nada. Eu nunca aceitaria passar por esse rito perverso.

-E acabaria aqui da mesma forma. É isso que acontece aos filhos primogênitos que se recusam a fazer o rito de passagem. São sacrificados na jaula de Nascár. Mas papai não deixaria você simplesmente ser sacrificada. Não! Ele te pouparia do sacrifício e encontraria algum meio de te obrigar a concluir o seu rito. O que mais importava para ele é que o seu legado tivesse continuidade. E só você poderia herdar esse legado, não é mesmo? Eu jamais poderia ser a líder do nosso povo. Esse é outro direito que só a primogênita tem.

-E então você matou papai para que eu não me tornasse a líder. – concluiu Marcela.

-É claro! Ninguém na ilha queria que você se tornasse líder. Só o papai. Mas a decisão dele era soberana. Todos só mantiveram essa farsa porque era assim que ele queria. Mas papai estava errado. Se você assumisse o lugar dele, seria o fim do nosso povo. Eu sempre falei isso para o papai, mas ele era teimoso. Dizia que você tinha o sangue dele nas veias e que por isso era uma de nós.

-Não é o sangue que define quem somos. São as nossas atitudes.

-Você não faz ideia do quanto eu concordo com isso, irmãzinha.

-Como você conseguiu atravessar o portal sem ficar cega? Você nunca conquistou o direito de usar a máscara de Nascár.

-Nós atravessamos o portal juntas, irmãzinha. Depois que você botou a venda nos olhos, eu sai de casa, montei no cavalo do homem mascarado e também vendei meus olhos. É assim que todos os primogênitos fazem para atravessar o portal e seguir para o seu rito de passagem. São acompanhados de olhos vendados por um mascarado que os guiam até o altar sagrado. Eu estava do seu lado o tempo inteiro. Só nos separamos depois que atravessamos o portal. Me escondi na mata e fiquei esperando você subir no altar sagrado. Minha flecha estava apontada pra cabeça do papai o tempo inteiro. Se você em algum momento levantasse o punhal, eu acertaria ele com uma flecha na cabeça antes que você conseguisse concluir seu rito de passagem.

-Se o que você queria era me impedir de se tornar a líder, porque não apontou a flecha para a minha cabeça então?

-Porque papai jamais me perdoaria por ter eliminado a herdeira do legado dele, sua idiota! Ele iria acabar me expulsando da ilha. A única solução era impedir que você concluísse o seu rito de passagem, matando ele primeiro. Quando você pulou do altar, eu ouvi papai dizendo que só havia um lugar no meio da mata onde você poderia procurar refugio. Na caverna dos morcegos. Ele pegou um atalho e eu o segui até lá às escondidas.

-Aquele homem mascarado então era seu cúmplice.

-Não só ele. Por conta dessa insistência em te tornar a próxima líder, papai criou muitos inimigos aqui. Ter simulado a própria morte e obrigado toda a ilha a manter essa farsa por tantos anos acabou lhe custando muito caro. Fez com que ele perdesse o respeito e o prestígio que antes desfrutava. Aos olhos do povo, ele deixou de ser o grande Jorge Mansur.

-E então você aproveitou esse sentimento de insatisfação geral e mobilizou todos a embarcarem no seu plano.

-É isso que os verdadeiros líderes fazem, irmãzinha. Mobilizam seu povo em momentos de crise.

-Mas você nunca vai ser a líder, não é mesmo? Você não é a primogênita.

-Eu não podia herdar a liderança através do rito de passagem. Mas como você que tinha esse direito não conseguiu concluir seu rito, a vaga ficou aberta para quem estivesse disposto a se candidatar ao sacrifício. Porque você acha que eu estou aqui dentro dessa jaula? Eu vou me tornar líder da mesma maneira que o papai se tornou, sendo escolhida pela cobra divina. Daqui a pouco aquele alçapão será aberto e Nascár sairá dali pronta para devorar uma de nós. E aquela que sobreviver será a líder. Quem você acha que a cobra sagrada vai escolher, irmãzinha? Aquela que sempre quis fugir da ilha ou eu que sempre fui fiel a ela?

-Eu acho que ela vai comer nós duas ao mesmo tempo, e nós vamos morrer unidas como duas irmãs inseparáveis.

Natasha pegou Marcela pelos braços e empurrou a irmã com força contra a grade. Em seguida, tirou uma adaga do bolso e a encostou no pescoço de Marcela.

-Não é assim que você deveria morrer, tendo a honra de servir de alimento para Nascár. Não! Você merece uma morte muito mais simples e banal, agonizando de dor da mesma forma que mamãe quando eu enfiei essa mesma adaga no estômago dela.

Perplexa com o que acabara de ouvir, Marcela empurrou os braços de Natasha e conseguiu se soltar da irmã. Não podia acreditar naquilo.

-É uma pena que eu não possa fazer o mesmo em você. –disse Natasha, guardando a adaga no bolso. –Mas calma, falta pouco para você virar comida de sucuri. Só espero que ela não se intoxique com o sangue sujo que corre nas suas veias. É isso que papai não sabia. Ninguém nunca soube. Só eu. E esse agora é o nosso segredinho. Você não é apenas herdeira do nosso pai. Carrega também o sangue nocivo da nossa mãe. Sim irmãzinha, é isso mesmo que você está pensando: mamãe era uma Sentinela do Leão.

Os Sentinelas do LeãoWhere stories live. Discover now