10

82 15 57
                                    

Fez-se um breve silêncio entre as duas. Marcela não sabia o que dizer. Jamais desconfiara que fosse filha de uma sentinela.

-Foi seu avô quem infiltrou mamãe aqui na ilha.

-A mãe que você tirou de mim! –lembrou Marcela, com cólera nos olhos.

-Ela tinha sua idade quando chegou aqui. 18 anos. Havia acabado de se tornar uma sentinela. Seu avô ainda vivia na ilha. Seguindo as instruções do Leão, ele treinou Marta para se tornar uma espiã. Quando o treinamento acabou, ele foi embora deixando ela aqui no seu lugar. O que ele não esperava era que seu próprio filho acabasse se tornando o líder do povo de Nascár. E o que no início era apenas um jogo de espionagem acabou se tornando uma oportunidade única de infiltrar uma sentinela na liderança da ilha e com isso levar nosso povo a ruína.

-Então o plano era que mamãe um dia se tornasse a líder da ilha?

-Não, sua burra! Você era o plano! Mamãe jamais poderia se tornar a líder do nosso povo. Não é assim que as coisas funcionam por aqui. A esposa não tem nenhuma participação nas atividades do líder. Ela não fica sabendo das reuniões secretas, não participa dos rituais, nada! Mas ela pode gerar um herdeiro e este é o único que, se cumprir o rito de passagem, um dia irá tomar o lugar do pai. No instante em que um filho derrama o sangue do próprio pai no altar sagrado, ele imediatamente cria um elo vitalício com Nascár. Uma esposa não pode herdar o legado do marido porque a ela não é dado o privilégio de ter o seu rito de passagem.

-Então mamãe casou com o nosso pai apenas para gerar o seu herdeiro. –concluiu Marcela.

-Não é óbvio? E quando você nasceu, foi ela quem te entregou pro seu avô. O plano deles era que você fosse criada longe da ilha, aprendendo a se tornar uma sentinela e que um dia retornasse para cá sobre a proteção da mamãe. Eles só não contavam que ao chegar aqui, você não tivesse mais ela pra te proteger, já que eu a matei primeiro.

-Se mamãe estivesse viva eu jamais me tornaria uma sentinela. Uma nova geração só surge depois que o último membro da geração anterior morre.

-Dois já estavam mortos. Restavam apenas nossa mãe e Igor. O homem que levou a culpa pela morte da nossa mãe. Consegue entender agora? O Leão não é tão diferente da gente quanto você pensa. Ele esperava que mamãe e Igor morressem antes que você completasse 18 anos pra assumir o lugar deles. Você veio ao mundo como parte de um plano arquitetado pelo Leão para nos destruir. Mamãe e Igor eram apenas os executores desse plano. Com o auxilio do idiota do seu avô, é claro.

-Nosso avô! Ele era o pai do nosso pai.

-Seu avô. Jorge não é meu pai. Eu sou filha de Marta e Igor.

Marcela sabia bem o peso que aquela revelação tinha para a sua irmã. Ela era fruto daquilo que mais desprezava. Era filha de dois membros da Guarda.

-Como você descobriu isso? –perguntou Marcela, intrigada.

-Eu tinha 13 anos quando flagrei os dois se beijando nos fundos de casa. Pensavam que estavam sozinhos porque Jorge havia viajado pro continente e eu deveria estar na escola. Mas naquele dia voltei mais cedo. E quando vi aquela cena nojenta, mamãe aos beijos com um cara que até então eu nunca havia visto, me escondi atrás da porta e ouvi toda a conversa. Nossa mãe dizia que estava preocupada com minha obsessão pelo povo de Nascár e que precisava evitar que eu me tornasse uma fanática adoradora da cobra. Igor chegou a sugerir que eu fosse entregue ao seu avô, para ser criada contigo, aprendendo a seguir os valores do Leão. Mas Marta alertou Igor que Jorge vigiava os passos do seu avô. Então decidiram que a melhor solução seria que eu fosse criada por Igor, no continente.

-Por isso você matou os dois.

-É claro. Essa ilha é tudo pra mim. E eles queriam me tirar daqui para que eu fosse criada por um inimigo do meu povo.

-E então você simulou toda aquela história do seu suposto rapto para que ninguém na ilha descobrisse que você não é uma legítima filha do povo de Nascár. Seu sangue é o de dois sentinelas.

-Não foi você mesma quem disse que são as atitudes e não o sangue o que define quem nós somos? Pois você não faz ideia do prazer que eu tive ao matar aqueles dois. Depois de ouvir toda conversa, enquanto eles se beijavam nos fundos de casa, fui até o quarto da nossa mãe, peguei o arco e as flechas dela e escondi a adaga na cintura, então voltei pra sala e acertei uma flecha na parede. Ela ouviu o barulho da flecha e correu até a sala. Quando me viu, me repreendeu por ter atirado a flecha e perguntou porque eu não estava na escola. Eu larguei o arco e as flechas no chão e com os braços abertos pedi desculpa, dizendo que eu só estava brincando. Ela caiu na minha armadilha e me abraçou. Na mesma hora, tirei a adaga da cintura e enfiei no estômago dela. Claro que o Igor ouviu o grito dela e correu pra sala. Quando ele chegou, eu já havia pego de volta o arco do chão e acertei uma flecha no ombro dele. Mas não atirei a segunda flecha logo em seguida. Eu queria que ele visse mamãe morrendo lentamente, jogada no chão da sala agonizando de dor. Só depois que ela apagou que eu atirei a segunda flecha na cabeça dele. E então peguei a adaga e cortei meu próprio braço, pra simular a tentativa de rapto.

-Você tinha 13 anos!

-Eu sei! Eu fui uma garota precoce! –afirmou Natasha, com orgulho. – Isso faz de mim um prodígio, não acha?

-Não. Isso faz de você uma psicopata.

-EU SOU UMA ADORADORA DA COBRA! –gritou Natasha, com firmeza. –E é isso o que nós fazemos! Provocamos guerras, genocídios, atentados, promovemos o terror. Em cada uma das maiores tragédias da história da humanidade havia por trás um adorador da cobra. Somos nós que espalhamos o mal pelo mundo.

-Mas por quê?

-Porque essa é a natureza humana. O bem é apenas um disfarce que os homens criaram para esconder a verdade mais absoluta. Que no fundo todos somos cobras disfarçadas de gente. A cabeça de Nascár não é uma máscara. Ela é a nossa verdadeira identidade.

Nesse mesmo instante, Marcela percebeu centenas de pessoas com a máscara de Nascár se aproximando da jaula, com tochas de fogo na mão.

-Chegou a hora, irmãzinha. –avisou Natasha com um sádico sorriso no rosto. –Você não estava achando que não haveria plateia para o seu sacrifício, não é?

Os mascarados cercaram os quatro lados da jaula e permaneceram em pé, imóveis, segurando suas tochas e encarando a garota com seus olhos de cobra. E nesse mesmo instante, Marcela sentiu o chão tremer com mais intensidade. Natasha então correu até o centro da jaula e abriu o alçapão. -Venha Nascár. O seu banquete está servido!

E da passagem que se abriu no chão, saiu uma enorme sucuri com 12 metros de comprimento. 

Os Sentinelas do LeãoWhere stories live. Discover now