O professor Tavares era um homem paciente. Não advertia alunos por qualquer motivo. Quando intimava um aluno a se apresentar em seu escritório, na coordenação do curso de dramaturgia, é porque algum limite havia sido ultrapassado. E aquela era a terceira vez em menos de dois meses que Fabi Meirelles lhe fazia uma visita.

-Apagão no campus, Fabi!

-Foi uma reviravolta surpreendente, não acha? A autora e diretora interrompendo a estreia do seu próprio espetáculo. Nem o senhor esperava por essa virada dramática!

- Isso não é mais um dos seus textos, Fabi! Isso é a vida real!

-A vida real é um texto que nós escrevemos dia a dia, professor! A realidade não é nada mais que uma ficção vivenciada. Tudo no mundo segue uma lógica dramatúrgica! O senhor deveria saber disso!

-O que eu sei é que são duas e meia da madrugada, e eu poderia estar assistindo as apresentações da Virada Cultural, ou dormindo no meu quarto. E ao invés disso você me obriga a abrir meu escritório há esta hora para te dar mais uma advertência. Você está querendo mesmo ser expulsa da Escola de Artes, é isso?

-O senhor sabe que tudo que eu faço é pela arte!

-Quando você encheu as caixas d'água do campus com sangue falso feito de xarope de groselha e depois se defendeu dizendo que era uma performance em referência as pragas do Egito, eu achei ousado e criativo. Quando você inundou os corredores do Bloco A com esse mesmo sangue falso para encenar seu texto de terror sobrenatural, sem avisar para ninguém que estavam participando de uma encenação, eu achei um pouco exagerado, mas relevei! Agora, provocar um blackout no campus não é arte, Fabi! É vandalismo!

-Não é não! É só um ato desesperado para salvar o meu espetáculo do fracasso total.

-Eu estava achando o espetáculo muito divertido até o momento do apagão!

-Está vendo? Mais uma prova de que fiz a coisa certa!

O professor Tavares fez uma cara de quem não entendia qual era o problema em um espetáculo divertir seu público.

-Fabi querida, eu estou fazendo um esforço enorme para te manter longe do conselho de classe. Se fosse pelos outros professores, você já estaria expulsa. Mas tá ficando cada vez mais difícil defender essa sua postura de "artista excêntrica e incompreendida". Me ajuda por que assim não dá!

-Não entendo de onde vem essa implicância toda desses professores comigo! –o professor Tavares puxou imediatamente da gaveta uma foto dos corredores do Bloco A inundados por um líquido vermelho que se assemelhava a sangue, onde se via claramente ao fundo um grupo de estudantes parados a escada, visivelmente apavorados com aquela cena. –Não tá fácil surpreender o público hoje em dia, professor! Para provocar algum tipo de reação na plateia, o artista precisa espetacularizar a sua história! –completou Fabi, fazendo pouco caso da foto.

O professor Tavares se esticou na cadeira, coçou a cabeça, respirou fundo e só então disse:

-Eu tenho certeza que não vai demorar muito para que eu me arrependa de te dar mais essa chance, mas tudo bem! –tirou da gaveta uma chave e entregou a Fabi. –Esta chave é da biblioteca. Você já sabe o que tem que fazer. Bote na prateleira todos os livros que os alunos deixaram espalhados pelas mesas, exatamente como você fez da outra vez.

-Mas agora? –perguntou Fabi, tentando escapar do castigo.

-E qual o problema? –questionou o professor Tavares, não acreditando na cara de pau da aluna.

-São duas e meia da manhã, professor. –disse Fabi, com uma carinha de coitada que já não sensibilizava mais o professor Tavares.

-Para a biblioteca agora! –ordenou o professor, tentando ser firme mas deixando escapar um sorriso que sem querer revelava uma certa admiração por tamanha petulância.

Sem falar mais nada, Fabi guardou a chave no bolso e seguiu até a biblioteca. Quando pegou a chave de volta para abrir a porta da biblioteca, foi abordada por uma moça albina, vestindo um capuz vermelho e óculos escuros.

-Então você é a famosa Fabi Meirelles que inundou os corredores do bloco A com sangue falso? –perguntou a moça albina, com ar de mistério.

-E você? É a chapeuzinho vermelho perdida em algum filme de vampiro de quinta categoria? –ironizou Fabi, fazendo pouco caso da moça.

-Me considere apenas uma fã!

-Uma fã que me encontra sozinha há esta hora no meio da madrugada? Sei! Acho que você está mais para uma stalker.

-De fato eu sei muitas coisas sobre você, Fabi! Sei por exemplo que nada lhe deixa mais entediada que falta de desafios para a sua mente criativa. Você é o tipo de pessoa inquieta que precisa sempre estar se superando.

-Desculpa te decepcionar, mas eu sou apenas uma contadora de histórias.

-Verdade! E mais do que ninguém você sabe que não há nada de inofensivo no ato de se contar histórias. Não é você mesma quem sempre fala que tudo no mundo segue uma lógica dramatúrgica? Se isso for verdade, então quem entende de narrativa tem um poder inesgotável nas mãos, não é mesmo? O poder de decifrar o mundo.

-Aonde você quer chegar com tudo isso? –perguntou Fabi, impaciente.

-Eu quero saber se a sua teoria está correta. Quero testar até onde esta sua convicção no poder da dramaturgia é verdadeira. E para isso eu tenho uma missão para você.

-Desculpe pela falta de interesse, mas no momento eu já tenho uma missão para cumprir. –desdenhou Fabi. E sem dar mais ouvidos a estranha, botou a chave na porta e finalmente abriu a biblioteca.

Ligou o interruptor e quando as luzes se acenderam, não conseguiu conter o grito ao ver uma cena tão grotesca que nem o mais chocante de seus espetáculos era capaz de superar. O salão da biblioteca era amplo e coberto por dezenas de ventiladores de teto, todos ligados. Em cada um deles, com uma corda no pescoço, havia o corpo de um professor de Fabi. Todos aqueles que queriam expulsá-la da Escola de Artes, agora estavam ali na sua frente, mortos! Seus corpos giravam em círculos, enforcados no teto da biblioteca.

Não era qualquer coisa que assustava Fabi. Mas aquela era uma imagem tão apavorante que até ela era incapaz de não reagir com horror. Não conseguindo encarar aquela cena, bateu a porta da biblioteca com força e reclinou a cabeça sem fôlego, encostando a testa na parede do corredor. Não teve tempo de contar quantos corpos havia dentro da biblioteca, mas tinha certeza que não eram menos que 30.

O susto foi tão grande que só alguns minutos depois, percebeu que a estranha albina de capuz vermelho não estava mais ali. Sua stalker havia simplesmente sumido. Sozinha no corredor recuperou o fôlego e correu de volta até a sala do professor Tavares, na esperança de ainda o encontrar por lá.

Mas o que ela encontrou ao abrir a porta do escritório do seu professor preferido não foi o refúgio que esperava. Assim como todos aqueles corpos na biblioteca, o de Arthur Tavares também girava em círculos, enforcado em uma corda presa no ventilador de teto do seu escritório. 

Os Sentinelas do LeãoWhere stories live. Discover now