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À poucas quadras de distância da boate Spectron, um outro grupo de jovens lotava o teatro da Escola de Artes da Universidade de Águas Cristalinas

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À poucas quadras de distância da boate Spectron, um outro grupo de jovens lotava o teatro da Escola de Artes da Universidade de Águas Cristalinas. Era o primeiro sábado do mês de outubro, e como acontecia sempre nesta data, era noite de Virada Cultural.

Sentada na quarta fileira da plateia, Fabiola Meirelles, a jovem autora e diretora de "A Donzela e o Malfeitor" era a única que não estava se divertindo na estreia de sua própria peça. Enquanto a plateia gargalhava, Fabi se encolhia na poltrona com a mão na testa e enquanto encarava o chão envergonhada, desejava apenas que ninguém a reconhecesse ali. Mas não notar a presença de Fabi Meirelles era impossível. 

Quem nasceu numa banheira de purpurina, veio ao mundo para brilhar. -é o que ela mais dizia. Se é verdade que nasceu no carnaval banhada de brilho, ou se esta é só mais das histórias que ela cria, isso ninguém no campus sabe. Mas o fato é que se esconder na multidão nunca foi algo que Fabi realmente desejasse. 

Tem a pele clara, olhos castanhos e os cabelos cacheados e coloridos, com mechas laranjas, amarelas, azuis, verdes, roxas, rosas e vermelhas, que ela retoca toda semana para não perder a cor. Suas roupas são igualmente coloridas e vibrantes, adornadas com bordados criativos e cheios de brilho. 

O problema para Fabi portanto não era não querer ser notada. Se orgulhava de provocar sensações na plateia, mas não qualquer tipo. Era ela quem devia ter o controle sob as emoções do público. Por isso, assim que as cortinas se fecharam no final do primeiro ato, levantou-se da poltrona e correu até o camarim.

-Você está vendo, Fabi? A peça é um sucesso! As pessoas estão amando! –disse Maria Júlia, a jovem atriz que interpretava a donzela, assim que viu Fabiola entrar no camarim.

-Eles não estão entendendo nada! –respondeu Fabi, aborrecida.

-Como não? Estão todos rindo, se divertindo!

-Essa peça não é uma comédia, Maria Júlia.

-E o que importa?

-O que nós conversamos sobre sua personagem nos ensaios?

-Que ela não é uma heroína.

-Exatamente! O título é uma ironia! Ela é a verdadeira malfeitora da história. Ela sabe de todas as falcatruas do milionário bonitão e o manipula para ter ele aos seus pés. No começo da história, ele está arrependido dos golpes que cometeu e quer seguir uma vida honesta. Mas desiste ao ser seduzido por ela. Impressioná-la passa a ser mais importante que sua própria honra.

-E daí, Fabi?

-E daí que as pessoas estão torcendo por esse casal como se eles fossem pessoas do bem. E não são! Estão reduzindo a minha peça a uma historinha de amor banal.

-Eles vão amar o final feliz, quando os dois terminam juntos!

-Mas não é um final feliz, Maria Júlia! É um tapa na cara! Eles deveriam sentir raiva desse casal! E sair do espetáculo incomodados pelos dois não terem sido punidos.

-Isso não importa agora, Fabi. Você não tem como controlar a reação do público.

-Tenho sim!

Fabi tirou uma cópia do texto da bolsa, riscou todas as páginas do segundo ato e em menos de cinco minutos, escreveu um novo final. Em seguida, correu até a máquina de xerox que havia no escritório da administração do teatro, e antes que o segundo ato começasse, correu de volta ao camarim e reuniu todo o elenco.

-Pessoal, tive que fazer algumas mudanças emergenciais no final da peça. Leiam com atenção e sigam o que está escrito aí. –disse enquanto distribuía o texto.

-Você tá maluca? Nós não ensaiamos nada disso! –protestou Maria Júlia.

-O erro foi meu, Maria Júlia. Eu admito. Mas agora não tem outra saída. Confio na capacidade de improvisação de vocês para salvar esta peça.

-Salvar uma peça que está todo mundo adorando? Não tá vendo que isso não faz o menor sentido?

-O que tem que fazer sentido é a história dessa peça. E agora ela vai entrar no eixo. O novo final é o seguinte: eles se casam, mas para se livrar das pessoas que sabem de suas falcatruas, envenenam a comida da festa e matam todos os convidados. Daí incriminam o cozinheiro e ficam livres para curtir uma luxuosa lua de mel no Caribe. Com esse final não tem como o público não sair incomodado do espetáculo.

-Esse final é ridículo, Fabi! –indignou-se Maria Júlia.

-Essa história é um melodrama, Maria Júlia. No melodrama o autor não deve temer o ridículo. Deve abraçá-lo.

Todos no elenco ficaram alvoroçados. A confusão no camarim só foi interrompida com o toque do terceiro sinal, que indicava que o segundo ato já iria começar.

-Vamos lá pessoal! Vocês conseguem! Esqueçam tudo que a gente ensaiou. Eu sei que o que eu tô pedindo parece ser absurdo. Mas é o único jeito! –insistiu Fabi, enquanto todo o elenco lhe dava as costas.

Não demorou para perceber que seu pedido não seria atendido. Quando viu que nenhum ator arriscava mudar uma linha sequer do que haviam ensaiado, correu até a caixa de distribuição de energia do campus e sem hesitar, desligou o disjuntor, provocando um blackout em todo campus.

Para Fabi Meirelles, tudo na vida seguia uma lógica dramatúrgica e não havia tragédia que não pudesse ser evitada pela imaginação, pois no fundo não havia conflito que não pudesse ser solucionado dentro de uma rigorosa estrutura de causa e efeito.

Foi essa mesma lógica que a fez concluir que àquela altura, para salvar seus personagens de um final indesejado, só lhe restava interromper o espetáculo. Como boa escritora que sempre foi, Fabi sabia como ninguém criar reviravoltas que mudassem para sempre o rumo de qualquer história.  

Os Sentinelas do LeãoWhere stories live. Discover now