Capítulo 20

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Depois que recebi alta e voltei pra casa. O cara estranho, que eu vou chamar de doutor simpático, foi até o quarto e me trouxe uma bandeja com água e remédios.

Ele sorriu da porta, e eu tentei demonstrar um mínimo de simpatia possível, mas na minha cabeça algo não parecia estar certo.

-- Eu..quero voltar pra casa..ver minha mãe, tem tempo que eu não vejo ela - Soltei assim que ele se aproximou.

Ele colocou a bandeja em cima da cama e me encarou compreensivo.

-- Sim, eu sei, mas só depois que estiver melhor, e quando eu falo melhor, estou falando no geral - Ele disse firme, como se me conhecesse.

-- Eu já estou melhor.

-- Não, não está, agora abre a boca - Ele ordenou com o comprimido em uma mão e o copo de água na outra.

Não vou abrir a boca, e se for veneno, boa noite cinderela, ou algum remédio pra controlar o vício.

Eu ainda não sei quais são as intenções dele.

-- Ei, confie em mim - Ele assegurou com uma voz calma e doce, olhando no fundo dos meus olhos.

E por mais estranho que pareça, eu senti segurança ali.

Mas logo voltei a ficar insegura de novo, porque a última vez que alguém me olhou assim, e eu confiei, ele ferrou com a minha vida de uma maneira.

Desviei o olhar aflita.

-- Eu quero ir pra casa - Repeti cabisbaixa, mexendo nos dedos para conter a ansiedade.


Na verdade eu não queria ir pra casa, e sim para porta de qualquer bar, mendigar bebida.


Eu precisava desse consolo, só assim pra não pensar demais e acabar virando refém das minhas próprias paranóias.


-- Eu sei pra onde você quer ir, e tá tudo bem - Ele falou calmamente, e por algum motivo eu me irritei.

-- Não pode me manter presa aqui, ouviu?

-- Não estou te mantendo presa, estou te mantendo segura.

Ri ironicamente.

-- Tá brincando.

-- Você bebeu metade no meu perfume, ninguém em sã consciência faz isso, a não ser que esteja com uma forte abstinência de álcool - Ele me encarou seriamente.

É, às vezes, a verdade nua e crua jogada na cara, te faz negar, e nessas situações é tão fácil fugir do que enfrentar.


-- Não, isso não é verdade, como pode pensar um absurdo assim de mim, você mal me conhece - Falei agitada.

-- Olha, só...toma o remédio, é para parar a dor, vai se sentir melhor - Ele suspirou ao ver que aquele assunto estava me deixando mal.

Depois de pensar um pouco, eu acabei tomando o comprimido. Ele ficou me olhando até estar convencido de que realmente engoli o remédio.

Abri a boca mostrando que sim para ele, mas ele fez cara de desconfiado.

Então levantei a língua, mostrando que não havia nenhum indício do comprimido.

-- Satisfeito?

-- Sim, precisa tomar os comprimidos se quiser melhorar.

-- Eu sei disso, ô doutor...

Suspirei, deitando na cama.

-- Isso é para o seu bem, eu sei que está com problemas, se quiser posso tentar te ajudar - Ele se ofereceu.

-- Não quero sua ajuda - Encarei o teto - Ninguém pode me ajudar, e eu sei me virar.


-- Ah, claro que sabe, eu vi no banheiro - Ele ironizou.


-- E outra, só porque me atropelou, não vai achando que tem direito de se meter na minha vida.

-- Eu só estou fazendo o que qualquer um com um mínimo de empatia faria, não quero que saia daqui mais perdida do que quando te atropelei.

-- Obrigado, mas não precisa.

-- Olha, deixa eu cuidar de você enquanto estiver aqui, depois disso você poderá ir e fazer o que bem entender da sua vida, mas durante esse tempo terá que me ouvir, tomar todos os remédios e o mais importante precisa confiar em mim.

Confiar, outra vez, essa palavra difícil.

Encarei seus olhos verdes por um instante e resolvi aceitar sua proposta.

-- Ok.

Ele sorriu de satisfação, dava pra ver o quanto ele estava empenhado, o que era um pouco estranho.


-- Aproveitando que estamos com as mãos entrelaçadas, eu sou o Peter.

-- Ana.

Ficamos nos olhando por alguns segundos, e eu senti uma certa afinidade, já que a partir desse momento não éramos mais dois estranhos.

Agora éramos Ana e Peter.

....

Eu precisei confiar no Peter, mesmo não querendo, porque só assim para eu me recuperar e sair daqui. Só não esperava que com o passar dos dias a gente fosse se aproximando mais.

-- Você cozinha bem - Elogiei, enquanto saboreava uma deliciosa sopa de legumes.

-- Quando se mora sozinho, você precisa aprender tudo - Ele falou pegando algumas roupas sujas que estavam espalhadas pelo chão.

Que eu sutilmente nem tinha notado que eram tantas assim.

Parecia que ele tinha passado um tempo fora de casa.

Fiquei observando a maneira ingênua como ele procurava pelo quarto, uma peça específica.

-- Aqui tem uma - Falei, me referindo a camisola que arrastei com o pé para debaixo da cama, sem que ele percebesse.


Sorri com a expressão enrusbecida dele.

Ele ajeitou o óculos e se aproximou.

-- Parece que eu não sou a única que já estive nesse quarto - Brinquei, maliciosa.

Ele se abaixou na minha frente e apanhou a peça íntima do chão.

Mas ele ficou calado por um instante, como se estivesse remoendo alguma coisa. E outra vez eu vi aquela mesma tristeza em seu olhar.

-- Então - Ele olhou pra peça e depois pra mim - Você foi a única que eu atropelei até agora - Riu fraco.

Levei a última colherada na boca, antes dele tirar a tigela das minhas mãos.

-- Sempre faz isso?

-- Isso o que?

-- Tira a tigela das mãos das pessoas antes delas terminarem de comer? Completei me lembrando da xícara.

Ele olhou dentro da tigela, depois me olhou desconfiado.

-- Você não é dessas que lambe a vasilha depois de comer, ou é?

-- Sim, há algum problema?

Ele me encarou com estranheza.

-- Me devolve - Falei tentando pegar a tigela da sua mão, mas ele ergueu a mesma pra cima e sorriu com deboche.

-- Me desculpe, mas vou fingir que não ouvi isso, e você não vai lamber a minha tigela - Ele brincou, em seguida saiu do quarto carregando as roupas sujas e a tigela.


-- Vou levar pra lavar, daqui a pouco eu volto

Quando ele saiu, o sorriso logo sumiu do meu rosto, outra vez senti o clima do quarto ficar pesado, e as lembranças voltaram a me pertubar.

DesilusãoWhere stories live. Discover now