Tentativa

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    Aquela brisa refrescante era tudo o que eu precisava. Tinha apenas jogado uma água no rosto, colocado um casaco longo por cima do vestido de festa suado, e trocado os saltos por alpagartas florais bordadas.
    A farmácia mais próxima ficava há um quarteirão. Sabia que não poderia tomar o remédio de imediato, por mais que quisesse fazer minha cabeça parar de doer, mas gostaria de ter uma aspirina em mãos pela manhã, quando provavelmente meu corpo se recusaria a sair da cama.
     Àquela hora a cidade estava adormecida, e poucas luzes permaneciam acesas na vitrine das casas do Brooklyn. Será que as pessoas acordadas agora sentiam o mesmo vazio que eu? O peso infindável da existência pairando sob os ombros, prestes a fazer com que desabassem no chão?
    Nunca havia percebido que era tão dependente de outras pessoas até meu término com Nicholas. Até não sobrar nenhuma amiga do colégio para quem contar sobre meus dramas, até não ter mais meu pai para assistir à todas as animações da Pixar comigo, até pensar que poderia viver em um mundo sem Cibelly.
     As vezes, quando eu contava sobre meu pai, muitas pessoas diziam, "Ah, mas você já não era nenhuma criança quando ele partiu", e por alguma razão isso me magoa mais do que os comentários de conforto. Achavam que era fácil lidar com o sumiço repentino dele, afinal, ele não devia estar morto, tinha até deixado uma carta... Mas não era mais fácil de lidar. Eu não podia afirmar que ele estava vivo, que estava bem, ou porquê decidiu ir embora. Tudo era confuso, e por muito tempo busquei respostas nas entrelinhas, e culpei minha mãe por possivelmente omitir partes da história.
    Meu pai sempre tinha sido um homem reservado, dizer misterioso soa mais dramático do que deveria. Trabalhava em uma imobiliária há quinze anos, não tinha amigos íntimos mas ia aos eventos de trabalho e socializava bem. Costumávamos ter tempo de qualidade, fazer atividades juntos, e eu desabafava mais com ele do que com a minha mãe.
    Lembro que no meu primeiro beijo, ele me buscou na porta do colégio, e passou o caminho todo me observando de soslaio, provavelmente estranhando meu silêncio e inquietação. Por fim perguntou, "O motivo dessas bochechas vermelhas é Ben Martin?", eu arregalei os olhos, me perguntando se estava mesmo tão na cara assim, e me afundei no banco do passageiro, como se pudesse desaparecer ali dentro. Nunca esqueci sua risada quando balancei positivamente a cabeça. "Vou precisar recarregar minha arma", falou, ainda rindo.
    Naquela noite tivemos uma das conversas mais incríveis que pai e filha poderiam ter. Ele me explicou a diferença entre paixão e amor. "A paixão é pássaro preso na gaiola, se admira, se aprecia, mas logo se irrita com seu canto. O amor... Ah, o amor é um pássaro livre."
    Estava tão entretida com meus próprios pensamentos, que não percebi dois homens se aproximarem, até que estivessem perto o suficiente para que eu sentisse o cheiro da fumaça de seus cigarros. Da calçada, conseguia avistar a farmácia. Trinta passos e eu chegaria lá. Apressei os calcanhares tentando fingir normalidade. Não precisava me desesperar, provavelmente eram apenas duas pessoas perambulando sem intenção pela rua.
    - Acho que é nosso dia de sorte, Joe - Minhas costas se enrijeceram ao ouvir a voz há um braço de distância. Ele poderia estar falando sobre qualquer coisa, não é?
    Joe não comentou nada. Suspirei fundo e corri. Eu poderia chegar à farmácia, e evitar uma grande furada, ou correr o risco de parecer uma completa maluca, mas não queria testar as teorias.
    Porém, não cheguei muito longe, antes de ser empurrada na direção de uma ruela estreita. Bati com as costas na parede de tijolos e arfei. Quando abri os olhos, o homem alto, de cabelo longo e aspecto sujo, me encarava com um sorriso de dar ânsia.
    - Precisa de ajuda, gracinha? - Perguntou o segundo homem atrás dele. Joe.
    Um gorro verde de lã sintética cobria seu couro cabeludo.
    Olhei para os lados procurando por qualquer sinal de ajuda. Qualquer sinal! Suas mãos apertaram meus ombros com ainda mais força.
    - Não encoste em mim! - Esbravejei. Eles riram daquela forma jacosa e nojenta.
    Trincando os dentes com ódio, o chutei, acertando a parte externa da coxa. Ele se dobrou no meio, e Joe avançou em minha direção, me derrubando de costas no chão. Desferi golpes às cegas, na tentativa de ferí-lo com as unhas. Tomando fôlego, gritei por socorro o mais alto que consegui. Joe foi ágil e tapou minha boca, não  hesitei em morder sua mão com força, e em consequência levei um tapa. Minha bochecha ardeu como fogo em brasa.
   O outro homem, vinha mancando em nossa direção, e mal percebi as lágrimas escorrendo por meu rosto. Só conseguia pensar que tudo acabaria ali. Naquele beco imundo e fedido, às duas horas da manhã. Minha última tentativa foi jogar todo o meu peso em Joe, para que perdesse o equilíbrio enquanto eu o socava. Ele não sairia dali com a cara limpa, mas eu sabia que era questão de segundos até seu amigo me alcançar. No entanto, dei um soco, dois, três, seis, nove, treze. Até que mãos fortes me levantassem do chão pelos ombros. E quando me virei com fúria nos olhos, e o punho levantado, não foi o parceiro de Joe que encontrei me encarando.
    Richard olhou para o sangue em minhas mãos, que tremiam copiosamente agora, e em seguida mirou meu rosto, procurando por qualquer sinal de hematomas. Atrás dele o outro homem estava caído, o nariz sangrava em um ângulo estranho.
     Ele passou as mãos para minha cintura e me colocou atrás dele, fitando Joe no chão. Seus olhos estavam arregalados, e sangue salpicava o gorro.
      - Drayton... - A voz de Richard saiu estrangulada quando se virou novamente pra mim - Meu carro está do outro lado da rua, em frente a barbearia. Vou chamar a polícia.
     Richard empurrou as chaves para mim, e não recusei. Estava em estado de choque, precisava me sentir segura, e processar o que aconteceu. O que quase havia acontecido...
     Desviei do corpo desmaiado, e quando finalmente atravessei a rua e cheguei ao carro, chorei novamente.

Inverno Em Saturno Where stories live. Discover now