Apenas Uma Trégua

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    - Meu pai se chamava David Laurent - Richard começou. Estava abalado e segurei sua mão em sinal de apoio. Eu disse que não precisava me contar aquela história, mas ele queria. - Bem, ele era caseiro em uma fazenda. Não ganhava muito, mas o suficiente para manter as contas em dia e garantir comida na mesa. Minha mãe cuidava da casa e de minhas irmãs. Liza, a mais velha, já ajudava nas tarefas domésticas, enquanto Laisla, a caçula, era pura energia e sempre me fazia rir. - E sorriu de um jeito afetado ao falar dela, antes de continuar : - Eu era o filho do meio e o único menino, o que me tornava o orgulho do meu pai. Liza sempre foi durona, cresceu rápido devido às responsabilidades. Laisla, por outro lado, tinha um espírito livre e era minha favorita.
"Como adolescente, eu tinha meus sonhos. Queria estudar e conquistar o mundo, essas coisas de menino, sabe? Mas minha mãe sempre foi ambiciosa e acho que herdei isso dela." - Fez uma careta que inicialmente não compreendi. - No meu aniversário de quatorze anos, pedi ao meu pai uma bicicleta, mas ele me deu ingressos para um jogo de baseball, esporte que eu nunca curti. Fiquei irritado, especialmente porque os lugares eram péssimos. - Riu sem graça nenhuma - Naquele momento, não percebi o esforço dele."
    Richard fez uma pausa, seus olhos marejados.
   - Na volta, discuti com Laisla depois de ela ter dito que eu era um merdinha arrogante e ingrato, e bem, meio que... gritei com ela. Meu pai ouviu, se virou pra trás e me repreendeu. Foi a última vez que ouvi sua voz." - Arfei, apertando sua mão com mais força inconscientemente. - Um caminhão nos atingiu em cheio. Liza e meu pai que estavam na frente morreram no impacto. Laisla foi levada ao hospital, mas não resistiu. Eu? Saí praticamente ileso.
    Aparentemente a história tinha chegado ao seu lastimável desfecho. Não queria chorar por isso pisquei algumas vezes.
    - Você se sente... Culpado, não é? - Minha voz saiu fraca.
    - E não sou? Se não fosse por mim, meu pai não teria tirado os olhos da estrada... A última coisa que fiz foi desapontá - lo.
     Ele sofria de culpa de sobrevivente. Quando meus olhos encontraram os seus ele parecia tão frágil quanto um pedaço de papel. A verdade é que a gente não conhece as pessoas, ou melhor, só conhecemos as partes que elas nos permitem enxergar. E naquele momento enquanto Richard abria sua alma diante de mim, senti como se pudesse ver cada uma de suas camadas. E acima de tudo, compreendê-las.
    - Você não teve culpa! Richard, acredito que tudo acontece por algum motivo. Aquele acidente poderia ter te levado também...
    - Mas não levou. E esse foi meu maior castigo, ainda pior que o jogo de baseball... - Sua tentativa de me fazer sorrir só afundou ainda mais meu coração. Queria muito abraçá-lo.
    - Seu pai teria orgulho se te visse agora. Você se tornou um homem admirável, tem um ótimo emprego, é bem sucedido, e...
     Ele me interrompeu como se não suportasse ouvir aquilo.
    - E é só. É só isso que tenho. Você não entende, Drayton? Eu trocaria tudo isso pra voltar atrás e impedir aquele acidente, eu trocaria tudo isso sem pensar duas vezes, pra ter uma vida, a minha vida de volta.
    Nunca parei para refletir sobre minha sorte. Tinha uma mãe amorosa e uma irmã que sempre esteve ao meu lado. Em algum lugar, também havia meu pai. Eu tinha razões para seguir em frente, motivos para amar e ser amada, motivos para lutar e acordar todos os dias as seis da manhã suportando o mal humor do sr.McJake e dos motoristas apressados. E Richard? Ele tinha dinheiro, uma mãe que, ao que parecia, não era das mais amáveis, e uma vida cheia de vazios. Enquanto eu enfrentava desafios financeiros, ele enfrentava vazios emocionais.
    Escrevi uma vez nos meus diários motivacionais, na época em que eu anda acreditava nessas baboseiras, que a vida, muitas vezes, se assemelhava a um quebra-cabeças. Cada peça representava uma experiência, uma pessoa ou um momento. Encaixá-las era um desafio, mas quando conseguíamos, era como se tudo fizesse sentido. Contudo, algumas peças poderiam se perder pelo caminho, deixando lacunas dolorosas. E são nesses momentos onde tudo sai do eixo que nós esquecemos que cada peça tem seu valor. E enquanto procuramos incessantemente por aquelas que nos faltam, acabamos esquecendo de valorizar as que já temos.
     Richard Laurent estava tão focado em sua culpa que passou a viver dela, que já o consumia por completo.
    - O que aconteceu com sua mãe? - perguntei.
    Ele pegou uma foto dela, uma das várias esparramadas pela enorme cama de casal dos seus pais onde estávamos sentados. Jenna Laurent era uma mulher de traços fortes e delicados ao mesmo tempo, nariz retilíneo, cabelos curtos e curvados para dentro, tinha um olhar marcante e intenso e parecia impenetrável.
     - Algo nela morreu no dia do acidente, e permanece assim até hoje. - suspirou com pesar. - Minha mãe enlouqueceu, primeiro fingiu que nada estava acontecendo, depois passou a chorar o dia todo, e então me culpava por tudo. Ela disse coisas... horríveis.
     - Sinto muito. Deve ter sido uma barra pra você.
     - Parecia pior pra ela. - Falou baixinho - Juro que tentei não me importar com as acusações, e então a convivência ficou insuportável porque ela achava que eu não sofria, mas porra, era a minha família também!
     Involuntariamente me encolhi com a onda de emoções, o que causou um desconforto em Richard que agora me olhava como se quisesse se desculpar por isso. Queria dizer que ele não precisava se envergonhar por demonstrar seus sentimentos, mas não tinha certeza de como ele receberia minhas palavras, então me limitei a dizer :
     - Sua mãe provavelmente estava muito imersa na própria dor para notar...
     Richard olhou no fundo dos meu olhos e baixou a voz algumas oitavas.
     - Drayton, eu vi minha mãe definhar, jogar coisas em mim e dizer que amaldiçoava o dia em que nasci, que eu era o próprio anticristo. Mas ela estava totalmente fora de si e eu tentava não internalizar o que ela dizia, só que no fundo, acho que acreditei nela. - Exibiu um sorriso amarelo, fazendo pequenos círculos na minha mão que ainda segurava. - Minha tia a levou para a Inglaterra há uns seis anos com a promessa de que cuidaria dela e que novos ares poderiam fazer bem para a demência que estava progredindo rápido demais.
    - Então a mensagem que ela te mandou de aniversário...? - perguntei me lembrando da reação de Richard ao abrir o pacote e ler o bilhete.
     Ele balançou a cabeça resignado.
    - Tia Lou escreve todos os anos o que ela acredita que minha mãe gostaria de dizer caso estivesse em perfeito juízo.
     Caramba. Aquilo devia ser pior ainda pra ele. Como um lembrete doloroso do que poderia ter sido mas não foi.
     - E vocês nunca mais se falaram depois que ela foi para a Inglaterra? - Queria parar de perguntar mas as dúvidas fluiam antes que eu pudesse impedir meus lábios de se moverem. No entanto, Richard não parecia bravo por eu parecer intrometida ou curiosa. Na verdade, tinha quase certeza que ele não tocava naquele assunto à muito tempo.
     - Bem, minha mãe não quis falar comigo, e atualmente dizem que ela não fala com mais ninguém.
    Ver Richard lutar contra as lágrimas despertou um senso de proteção que me fazia desejar arrebentar a maldita linha do tempo onde todas aquelas coisas horríveis o machucaram e protegê-lo do mundo, como eu não podia fazer isso, o abracei. Meio de lado, meio sem jeito, com um misto de vergonha e emoção contida, e aos poucos senti seu corpo tenso relaxar e o coração desacelerar, sua cabeça repousou em meu ombro, e ficamos em silêncio por horas, dias, meses, séculos, não sei.
     Nossa respiração sincronizou e desfrutei de uma tranquilidade que já não sentia a muito tempo.
   
***

    Haviam se passado mais de duas horas desde que Richard me deixara na porta de casa como prometido. Desde então, eu tinha me deitado na cama, observando a bolinha verde de silicone saltar no teto e, inevitavelmente, retornar à minha mão em um ciclo contínuo e meio maníaco de distração.
    O trajeto para casa também foi silencioso, mas não me incomodei pois sabia que não existia nada que pudesse ser dito. Quando desci do carro, Richard me agradeceu pela ajuda e falou que agora eu podia parar de tentar recompensá-lo desesperadamente por todas as vezes que me salvou.
    Arremessei a bolinha no cesto de roupa suja posicionado no canto do quarto, finalmente me libertando do transe quando uma notificação de Tina fez meu celular apitar.

TINA: CASO DE EMERGÊNCIA!!!! Kim, amanhã vou à uma exposição de carros antigos com o Josh. Que tipo de roupa as pessoas usam nesses eventos?

TINA: Só consigo pensar no estilo "metalero". Será que devo fazer uma tattoo? Você tem uma jaqueta de couro pra me emprestar?

TINA: PELO AMOR DE GUADALUPE, ME AJUDE!!

Definitivamente minha amiga não estava em pleno juízo de suas faculdades mentais se acreditava que eu era a pessoa certa a recorrer.

EU: Jaquetas de couro são radicais demais para o meu padrão de vida. E não faço ideia de como te ajudar.

A resposta chegou meio minuto depois.

TINA: As vzs me esqueço que vc é uma jovem senhora de 24 anos.

EU: Não vou encarar isso como uma ofensa. O que o Joshua vai usar?

TINA: O de sempre. Camiseta e calça jeans. A vida é tão mais fácil quando se nasce homem...

EU: Não seja tão dramática. Camiseta e jeans vão cair tão bem em você quanto no Joshua.

TINA: Arg!! Você é péssima! Mas te amo mesmo assim.

Dez minutos depois haviam sete vídeos dela na frente do espelho perguntando qual bota combinava mais com a calça skinny e a regata branca. Isso me distraiu por algumas horas, e tive aquela sensação de normalidade por um tempo. Uma sensação que na maior parte do dia não vinha.

Vai ver às vezes a gente só precisa desacelerar.


    

Inverno Em Saturno Where stories live. Discover now