Cartão de Salvação

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Kimberlly Drayton

Já faziam quase dois dias que estavam me mantendo naquele quarto. O por quê? Não sei. Ninguém me falava nada!
A noite em que cheguei foi terrível, não me deram comida, nem água. O dia que se procedeu depois, foi ainda pior. Embora Brian tivesse me trazido sopa.
Uma sopa horrível! eu tinha todos os motivos para reclamar. O macarrão estava duro, a batata derretida demais, o tempero parecia alho puro e a carne... bem, não vou nem comentar nada.
De qualquer forma, ele tinha uma arma e eu sabia que não hesitaria em usá-la mas mesmo que eu morresse de fome, não iria comer aquilo.
Chutar a comida não foi a melhor escolha que fiz. Isso o deixou irado! E ele tinha descontado tudo em meu rosto. Que agora ardia como o diabo.
Maldito covarde!
Na segunda noite, Nicholas apareceu. Apesar de ter se mostrado insatisfeito com os hematomas em meu rosto, não fez nada. Disse que eu só precisaria aguentar mais um pouco e que logo me tiraria dali. Falou também que eu deveria colaborar e tentar não irritar Brian. Quando tudo aquilo acabasse ele me explicaria o que estava acontecendo.
Ele ocupava o primeiro lugar da minha listinha negra agora. Suas desculpas só me deixaram com mais raiva. Eu tentara ajudá-lo e o que ele fizera para retribuir? Me ferrou no meio das tramóias dele.
Eu era a carta de salvação. Também não tinham me explicado o que isso significava. Mas deduzi que estavam me usando para conseguir alguma coisa.
Agora deviam ser mais ou menos meio dia. A claridade entrava pela janela empoeirada, o sol era quente lá fora.
Na primeira noite, chorei tanto que devo ter me desidratado mas em algum momento a angústia deu lugar ao ódio. E agora tudo o que eu conseguia pensar era em sufocar Brian com um travesseiro e sair dali.
Não tinha um só minuto em que meus pensamentos não flutuassem até Richard. Estaria ele sabendo do meu suposto desaparecimento? Estaria ele preocupado? As vezes eu ficava me perguntando porquê isso me importava. E a conclusão era sempre a mesma. Eu não queria pensar nela. Doía tanto quanto no momento em que ele arrancou meu coração e pisou em cima.
Foi terrível engolir minhas palavras e perceber que no final Diane estava certa em uma parte. Homens só pensam em uma coisa.
Santo Deus, onde eu estava com a cabeça quando fui pensar que Richard, logo Richard, seria diferente? Devia estar nas nuvens, era a única justificativa plausível.
E eu mal conseguia imaginar como minha mãe estaria uma hora dessas. Arrasada.

A porta rangeu. Brian passou por ela com um prato. Meu estômago rugia de fome.
- Se jogar isso fora vai ficar de castigo. E acho melhor comer tudinho, você não nos serve pra nada se estiver morta.
Engoli em seco.
Brian agachou-se à minha frente, empurrando o prato para o lado a fim de me observar.
- O Nick é um cara de sorte - Seu sorriso me deu ânsia.
- Tire as mãos de mim! - Mandei, quando seus dedos tocaram meu rosto.
Ele se afastou um pouco, para pegar o prato.
- Agora abra a boca...
Era macarrão instantâneo. Eu costumava gostar mas ultimamente vinha fazendo mal pra mim. Muito conservante. Sem contar que não matava fome nenhuma.
O gosto não estava ruim, e isso não era novidade, até porque não seria possível que aquela toupeira não soubesse fazer nem que fosse um macarrão instantâneo. Pelo amor de Deus, até uma criança de cinco anos é capaz de fazer isso.
- Quero ir ao banheiro - Falei quando terminei.
Ele já estava de pé.
- Você foi ontem.
Tive que rir. Sem vontade nenhuma.
- E hoje é um novo dia!
Suas mãos desamarraram a corda, me libertando.
A vontade de sair cantando e dançando a música do filme "Froozem" era grande, mas me contive e cantei apenas mentalmente.
Livre estou...
Livre estou...

O banheiro do lado de dentro da casa não funcionava. Por isso, Brian abrira dois buracos no chão de madeira da dispensa.
Um buraco para líquidos e outro para sólidos.
A dispensa tinha uma janela pequena. Sempre que eu entrava lá dentro, analisava todos os pontos para uma possível fuga. A janela era a única possibilidade mas era provável que não passasse nem minha cabeça ali.

Brian me levou de volta para aquele raio de quarto que fedia mofo, me amarrando novamente aos pés da cama.
Adeus liberdade.
- Estou logo no cômodo da frente. Fique quietinha.
Brian tinha montado uma espécie de escritório em um dos cômodos. Só sei que tinha uma mesinha de computador, um laptop, uma cadeira e uma jarra com um líquido âmbar. Sabe se lá como ele conseguira armazenar energia.
Sem muito o que fazer, tentei arrumar uma posição em que deitar fosse possível. Não deu muito cert...Espere um minuto.
Me abaixei novamente. Tinha alguma coisa em baixo do armário. Tentei esticar meus pés...Faltava pouco...Só mais um pouquinho... Ahá!
Puxei o objeto com os pés.
Um canivete enferrujado.
Devia servir pelo menos para cortar as cordas. Me abaixei mais um pouco pegando o canivete com os dentes.
Deixei-o cair de propósito perto de minhas mãos. Procurei fazer com que elas se afrouxassem um pouco e então finalmente consegui pegar o meu cartão de salvação.
Foram precisas várias tentativas até que a corda começasse a se partir. Meus músculos já estavam cansados de tanto se movimentar e minha mão formigava.
As cordas se partiram totalmente, me libertando.
Abri e fechei os dedos. Flexionando.
Não tinha muito o que investigar naquele cubículo, a não ser o armário...
Abri a porta, tentando ser silenciosa e procurei não tossir quando uma camada de poeira abafou minha visão. Ao menos não haviam morcegos lá dentro, em compensação, um bocado de teia de aranha.
Não parecia ter nada de interessante, apenas um relicário em formato de coração, uma caixinha de doces antiga e um pedaço de papel.
Passei os dedos pela corrente do relicário. Parecia feita de ouro e possivelmente era mesmo, apesar de apresentar-se velha, não tinha nem sinal de ferrugem ou algo do tipo.
Destravei a abertura, só para dar de cara com dois rostos...Não tão desconhecidos assim. Quase dei um pulo pra trás.
Eu sabia! Sabia desde que cheguei aqui, sabia que já tinha visto essa casa antes.
Me encarando em um retrato preto e branco estavam um casal. Um homem ligeiramente calvo, acompanhado pela bruxa má da Branca de Neve.
Tudo bem que eu estivesse dramatizando um pouco. Mas se quer saber a verdade, bruxa é um adjetivo muito vazio para descrever Diane Laurent.
A situação indicava uma coisa: Aquela foi a casa que abrigou cinco pessoas a tantos anos atrás, a casa onde Richard nasceu e foi criado. E possivelmente eu estava no quarto dele. No quarto de Richard...Santa Mãe de Deus!
Puxei a folha amarelada de dentro do armário. Tão antiga que poderia se desfazer ao meu toque.
Meu queixo caiu quando me dei conta do que era. Era muito mais do que um cartão de salvação, era meu passaporte de glória!
Um mapa!
E não era qualquer mapa. Era um pedaço de papel feito a mão e não indicava a planta da casa. Indicava a planta do quarto. Daquele minúsculo quarto. Que agora olhando para a folha não parecia tão pequeno assim.
Existia uma passagem secreta. Dentro do armário.
Não hesitei em abrir a outra porta. E confesso que de início não notei nada de diferente. O armário estava vazio, exceto por uma vassoura e um par de sapatos velhos e gastos.
Segundo as instruções, meu primeiro passo seria levantar a tampa. Feito
Só bastava torcer para que eu não acabasse indo parar em Nárnia.
Minha boca deve ter formado um O. Existia um buraco muito, muito fundo, e uma escada não tão confiável assim.
Fechei a primeira porta do armário. Para então me enfiar dentro dele, fechando silenciosamente a outra.
Tente não tossir, Kimberlly. Sem sucesso.
Desci as escadas, abaixando a tampa no teto, em seguida. A penumbra cobriu minha visão.
Tateei a parede de barro. Eu estava debaixo da casa? Qual a probabilidade de ter energia elétrica ali em baixo? Zero.
Uma luz fraca chamou minha atenção mais à frente. Vinha do alto.
Logo entendi. Era a claridade do "escritório" improvisado de Brian. Provavelmente o reflexo da janela.
A parca iluminação me possibilitou enxergar uma lanterna de metal enferrujada no chão.
Era pesada. Apertei o botãozinho e a lâmpada do objeto se acendeu.
Ainda bem que eu não sofria de claustrofobia ou algo do tipo ou então estaria em apuros.
Tinha que haver uma saída.
Consultei o mapa. Devia ter um corredor logo à frente e então outro, e mais outro. Era um túnel. As instruções iam além de complexas. Se eu me perdesse, não sairia dali nunca!
Me dividi entre o medo de voltar pra trás e o medo de prosseguir e dar de cara com a morte.
Eu não voltaria atrás. Aquele mapa não estava ali dando sopa à toa. Prosseguir seria minha única chance. Era isso.
Me arrisquei pelos corredores sombrios.
Eu sairia dali viva.






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