Cão e Gato

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     Havia se passado pouco mais de uma semana desde que eu começara a trabalhar no PG-Hotel, mais de uma semana desde o incidente com o morador do 992. Nunca mais o tinha visto após aquele dia, e ele de fato, cumprira sua promessa de não me dedurar, afinal eu ainda estava empregada.
    O maldito gerente, finalmente parecia ter encontrado outra pessoa para atormentar. Gerald, do setor de finanças. O pobrezinho tinha cometido algum erro na quarta-feira, e vinha pagando à duras parcelas, com sua alma.
   Naquela manhã, dei um beijo em minha mãe e outro em Cibelly, que animadamente me contava a respeito de um vídeo que tinha assistido sobre a  organização hierárquica das abelhas, em um canal de fatos científicos no YouTube. Ela amava animais e ciência. Sempre acreditei que se daria bem como bióloga. Conseguia imaginá-la estudando algo da área.
   No caminho para o hotel, tentei não pensar que talvez, Cibelly não chegasse à Universidade. Oras, é claro que ela chegaria! Minha irmã era a criança mais forte que eu conhecia! Era tão madura e corajosa... Não sei se no lugar dela, outra pessoa da família lidaria tão bem com a situação.
    Desbloqueei o celular, mais três e-mails de Nicholas apareceram no visor. Deletei sem ao menos dar ao meu coração o martírio de ler. Precisávamos aceitar que tínhamos mesmo terminado e seguir em frente. Não podíamos ser amigos, como pensamos de início, no final das contas, alguém sairia machucado.
    Àquela altura, já começava a me habituar com os metrôs, com as pessoas que nunca sorriam ou davam "bom dia", os pombos por toda parte, e ao clima oscilante. Meu organismo ainda estranhava o fuso horário, mas as dores de cabeça, causadas por ele, se tornavam cada vez menos constantes.
    A check-list, com o número dos APs, horários e dias da semana, ainda não havia ficado pronta, o que significava que eu precisava passar na recepção assim que chegava para perguntar o número dos apartamentos do dia.
    - Bom dia, Sarah! - Cumprimentei a recepcionista, provavelmente minha pessoa favorita naquele hotel, até agora.
     - Bom dia, querida Kim! Suas ondas estão incríveis hoje, garota! - Exclamou passando os dedos pelo meu cabelo. Detestava que pegassem em minhas madeixas, mas Sarah era um amor, e, só por isso, poderia abrir essa exceção.
    - Usei uma hidratação caseira que vi na internet. Posso te enviar o link se quiser. - Ofereci, já abrindo o celular e procurando seu nome na lista telefônica.
     Ela sorriu.
   - Você é uma menina de ouro, Kim.
   - Não precisa me bajular, Sarah. Um dia ainda vou pegar o seu lugar nessa recepção.
    Sua risada era enérgica e chamou atenção de algumas pessoas em volta.
    - Ficarei feliz em cedê-lo à você, assim que o George Clooney me notar no Facebook, e começarmos a viver um romance arrebatador em Hollywood. - Suspirou teatralmemte. Ri, mas não quis dizer a ela que ninguém mais usa o Facebook hoje em dia.
    - Bom, enquanto seu romance não acontece, somos obrigadas a viver o mundo real... - Comentei com escárnio, dirigindo um olhar significativo ao sr.Mcjake, que conversava com um casal na porta de entrada.
   - Me permite falar a verdade, querida? - Voltei minha atenção para ela. Se debruçou no balcão, para chegar mais perto - Você é esperta demais para esse lugar. Na primeira oportunidade que surgir, voe para bem longe.
    Um frio percorreu minha espinha. Em uma época distante, acreditei realmente que poderia ser bem sucedida. Que iria para a universidade e um dia seria o motivo do orgulho dos meus pais. Não sei exatamente em qual dos acontecimentos catastróficos da minha vida, isso saiu dos planos.
    - Não vai conseguir se livrar de mim tão cedo, Sarah. - Brinquei.
    O sorriso em seus lábios sumiu, e sua expressão se anuviou, não precisei perguntar porquê.
    A voz do gerente nos alcançou em minhas costas.
     - Não estão sendo pagas para fofocar! - Bateu uma palma na outra - Vamos! Trabalhando! Agora!
   Sarah emitiu minha nota do dia, e antes que eu pudesse virar as costas, sussurrou :
     - voe!
   
   O 992 era o último do dia, e agora já nem me importava mais em entrar dentro do espaço imponente e branco. Ao decorrer da semana fui percebendo que encontrar o sr. Laurent aquele dia tinha sido mera falta de sorte, pois aparentemente ele chegava em casa após meu expediente.
    Não foi diferente naquela segunda-feira. Apesar de não estar em casa, o cheiro do morador parecia impregnado em cada cômodo. Assim que eu entrava abria as janelas e usava os melhores produtos de limpeza do carrinho, mas nada camuflava o cheiro de Laurent, e isso sempre me frustrava. Era como se ele estivesse ali o tempo todo, me observando com aqueles olhos atentos e julgadores.
     Agora existia uma fita isolante na fechadura da porta misteriosa, o que sempre me fazia rir, mas sendo sincera, já quase não pensava no que poderia ter atrás dela. Talvez fosse lá que Laurent desmembrava o corpo de suas vítimas, e eu realmente não queria me deparar com um cadáver ou com qualquer cena bizarra, então decidi ignorar a porta e fazer o meu trabalho, conselho que deveria ter seguido desde o primeiro dia.
    A única cor que se destacava na sala de estar eram dos quadros na parede. Às vezes me pegava observando as pinturas - não que eu entendesse daquele tipo de arte - mas algo nelas me deixava absorta, imersa na história que aquelas formas difusas contavam.
    Conseguia identificar alguns traços em um dos quadros, como o olho de um gato, o pedaço de uma nuvem e algo parecido com uma borboleta. Eu não  costumava ir à exposições de artesanato ou coisas do tipo. O que eu gostava de verdade era de livros! Ler e escrever. Aquele era o meu tipo de arte.
    Soltei um suspiro melancólico ao chegar na sacada do apartamento e ver o sol cada vez mais baixo. Já estava quase vencendo o meu horário. Olhei ao redor, tudo limpo e brilhando. E não estava diferente quando cheguei. A única coisa que de fato fiz foi guardar as compras deixadas em cima da mesa, lavar os dois banheiros - que pareciam terem sido limpos no final de semana -, e tirar as roupas da secadora. Fora isso, o chão permanecia tão limpo que quase conseguia me enxergar na porcelana. Não identifiquei nenhuma poeira ou vasilha suja, nenhuma migalha sobre a mesa. Nenhuma dobrinha na roupa de cama. NADA!
    Aquele era o verdadeiro clichê do homem rico, bonito e maníaco por organização. Talvez ele tivesse razão e realmente, não precisasse de mim.

Inverno Em Saturno Where stories live. Discover now