Sem Barreiras

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Não sei bem em que momento minhas roupas foram parar no chão. Me lembro mais ou menos de puxar a camisa de Richard para cima e jogá-la em algum canto, e então caímos na cama. Também me recordo das tábuas protestando contra nosso peso.
E logo depois disso as barreiras entre nós se dissolveram completamente e não restou mais nada além do desejo que nos consumia.
Nos unimos um ao outro, como um só. Fogos de artifício explodiam em meu cérebro, resultado da colisão entre positivo e nagativo. Entre o meu mundo e o mundo de Richard.
Me sentia tão viva! Queria eternizar aquele momento no meu coração. Em minha alma.
Daqui a mil anos se me perguntassem sobre essa noite, eu saberia dar todos os detalhes. A maneira como Richard me olhava, profundo e decidido, o modo como todo o meu corpo reagia ao dele...O mundo poderia pegar fogo e em meio ao pânico eu ainda me lembraria daquela noite.
Agora eu me encontrava ofegante, a cabeça deitada em seu peito suado, ouvindo as batidas agitadas de seu coração. E eu poderia passar a eternidade ouvindo aquele som.
Richard não dissera nada enquanto nós...bem...enquanto fizemos o que fizemos. Não que eu esperasse que ele dissesse. Isso com certeza estragaria toda a magia. Mas ele parecia inquieto agora.
- Drayton - Meu coração bateu tão rápido que tive a impressão de que poderia ser ouvido a quilômetros.
Levantei a cabeça. Os cabelos dele eram uma bagunça elegante. Os olhos de um verde tão brilhante que despertaria inveja às mais belas esmeraldas.
- O que estamos fazendo, Drayton?! - Sua voz saiu estrangulada.
Não sei se entendi bem. Mas sei que não gostei do seu tom.
- O que quer dizer?
Ele se sentou, me obrigando a levantar também. Puxei o lençol para me cobrir.
- Quero dizer que confundimos tudo! - Enterrou a cabeça nas mãos.
C-confundimos? Que merda ele estava falando?
- Richard, por favor não estraga isso... -Supliquei com medo do rumo daquela conversa.
Tinha sido a melhor noite da minha vida! Ele não podia acabar com tudo agora!
- Já estragamos TUDO! - Me encolhi quando ele gritou - Não era pra ser assim! Não era... Onde eu estava com a cabeça, me diga!
Engoli em seco.
- Eu...eu estava certa de que você queria... - Tentei manter a voz em um nível menos desesperado- Você... Você é louco!
Ele balançou a cabeça alucinado.
- Nunca quis me aproximar de você! Mas você insistiu nisso Kimberlly! Insistiu em uma amizade que estava fadada ao fracasso! E agora olha só no que deu! Misturamos tudo!
Mas... Eu não entendia mais nada! Nada!
- Se você não queria se aproximar, então por quê apareceu aqui hoje? Por quê pediu para ficar? POR QUÊ ME FEZ ACREDITAR QUE GOSTAVA DE MIM?!
Dessa vez não fui capaz de controlar as lágrimas. Doía. Tudo doía! O peso de suas palavras, tudo!
- Eu me deixei levar! As coisas fugiram do controle!
Engasguei com as lágrimas. Era humilhante demais para acreditar.
- Você só queria me levar pra cama...Era isso!
Diane tinha razão nesse ponto. E eu odiei Richard ainda mais por provar que ela estava certa!
Sua expressão torturada me fazia ferver. Eu não queria a pena dele! Se é que estava mesmo com pena de mim.
- E você facilitou tudo. - Admitiu com descrença, uma sombra nublando seus olhos.
Meus ouvidos não creram no que escutaram.
Ele não só havia partido meu coração como dançado um belo samba em cima dele. E agora tudo queimava. O grito estava preso na garganta; mas eu não podia soltá-lo, porque não aliviaria a dor no meu peito.
Me levantei segurando o lençol junto ao corpo.
- Suma! Suma daqui! - Joguei suas roupas em sua cara. Ele pegou a camisa no ar.
- Sinto muito por ter sido assim, Drayton.
Minha melhor noite. Arruinada. E ele sentia muito?
- Não OUSE dizer que sente muito! Você me usou! EU TE ODEIO!
O soluço veio inesperadamente e pensei que pudesse cair de joelhos.
Richard parecia assustado com minha reação. Sua respiração se tornou rápida e sua boca se comprimiu, mas ele simplesmente vestiu as roupas de qualquer jeito e passou por mim sem nem olhar na minha cara.
Vislumbrei meu novo celular em cima da mesinha da sala. A mesma mesa em que bati a cabeça no dia em que... aaaa não valia a pena lembrar.
Segurei o aparelho com a mão tremendo.
Richard estava hesitante com a mão na maçaneta da porta como se pressentisse meu ataque.
Arremessei o aparelho na parede. Este, se quebrou em pedacinhos.
- E fique com essa porcaria! Não quero nada que venha de você!
Ele não se virou. Mas os músculos de suas costas se enrijeceram e então ele foi embora.
Me senti deslizando até bater no chão. E então o grito veio. Gritei de raiva, gritei de dor, gritei em agonia até perder a voz.
Dona Lurdes devia ter o sono pesado ou talvez só resolveu que seria melhor ignorar. Realmente, ela não era um sinônimo de segurança. Eu podia muito bem estar sendo assaltada e ninguém me prestaria socorro.
Me forcei a entrar no quarto. Meu vestido estava caido no tapete ao lado da cama. As cenas preencheram minha visão e meus olhos se encheram de novas lágrimas. Lágrimas ácidas que queimavam meus olhos.
Por quê ele tinha sido tão babaca? Por quê aquilo tinha que doer tanto?
Tudo bem. Eu já tinha passado por coisas tão piores. O desaparecimento do papai, a doença da minha irmã, o término com Nicholas... Mas aquilo era tão doloroso que até respirar era difícil. Eu tinha sido cruelmente humilhada. Usada. Rejeitada!
Tomei um banho como se isso pudesse aliviar minha angústia. Vesti a calça de moletom e uma blusa folgada que um dia fora da minha mãe.
Estava tarde para sair perambulando pela rua e cedo demais para dormir. Se é que eu conseguiria pregar os olhos...
Fui para a cozinha. Único lugar da casa que não me lembrava Richard.
Deitei a cabeça na mesa e deixei as lágrimas escorrerem.
Eu tinha sido tão tola! Acreditei que talvez ele pudesse mudar mas tudo tinha sido apenas ilusão! Uma tremenda fantasia de um menina idiota que...
Levantei-me de súbito com uma batida na porta.
Eu juro que se fosse aquele cafajeste... Não me responsabilizaria pelos meus atos!
Arrastei os pés até a porta. Espiei pelo olho de vidro. Não era Richard.
- Hã, boa noite? - Falei confusa e com a voz embargada.
- Vai desculpando ai a visita a essa hora da noite, eu precisava bater um papo com você.
Brian usava camiseta branca em gola V, uma calça cinza falsificada da ADIDAS e tênis.
O cabelão parecia mais áspero do que nunca.
- Pode falar.
Espera, eu devia chamá-lo para entrar?
- Eu te acordei? - Perguntou com a testa franzida.
Balancei a cabeça negando.
- Não.
- Bom...Seus olhos estão um pouco vermelhos...Não sabia que você era do tipo que fumava um back.
Aah, era só o que faltava.
- Não fumo. Só estava... Ah, não importa. O que veio falar comigo?
- Então, o negócio é o seguinte moça, seu namorado é um tanto novato nessa área da malandragem e tudo mais...
Isso não parecia uma boa abordagem.
- Vamos direto ao ponto? - Apressei impaciente.
- A parada com o poderoso chefão não deu certo e agora o Nick acha que é melhor se mandar. Tipo já!
As palavras dele me confundiam um pouco
- Ele vai fugir?
Brian anuiu.
- E ele quer te ver. Se despedir, sabe como é.
Era muito para um dia só...
- Onde ele está?
Olhei pela rua. Não tinha ninguém no carro de Brian.
- Na minha casa. Deixei ele lá emplasticando os documentos falsos.
Nicholas tinha simplesmente acabado com a vida dele. Poxa,ele tinha uma família. Pai, mãe, irmã, amigos...
- Ele mandou você vir até aqui?
- É. E estamos demorando. Não temos muito tempo, entende?
Nicholas devia estar nervoso. Eu o conhecia bem o bastante para saber que uma hora dessas estaria andando de um lado para o outro desorientado passando a mão pela cabeça.
Ele precisava de mim.
- Ok. Me dê um minuto para trancar a casa.
Brian fez um "beleza" com o polegar.
- Vou esperar no carro.


Era uma noite fria e sem lua. Nem as estrelas enfeitavam o céu. Aquilo poderia significar uma coisa. Chuva.
Chuva combinava com o momento.
Eu não tinha ideia de onde Brian morava. Faziam uns dez minutos que estávamos no carro, atravessando o bairro.
Nova York era uma cidade grande. Do Brooklyn à Manhhatan eram mais ou menos cinquenta e três minutos, isso sem contar quando o trânsito congestionava. E todo dia era esse percurso que eu tomara. Do trabalho para casa, de casa para o trabalho, do trabalho para o hospital e assim a diante. Na maioria das vezes era cansativo.
Quando Brian entrou em uma estrada de chão, tive conhecimento de para onde estávamos indo.
- O galpão?
Ele não respondeu.
Não sabia que existia casas ali. Até agora não tinha visto nenhuma. As coisas estavam começando a soar estranhas, para dizer o mínimo.
- Brian? Onde estamos indo?
Seu olhar era afiado.
- Dá pra calar a droga da sua boca?
Meu coração bateu forte no peito. O pressentimento não era nada bom.
Forcei a porta. Estava travada.
- Pode parar com isso? - Rugiu.
O desespero se inflamou em mim.
- Me diga onde estamos indo!
Seus olhos me fitaram intensamente. Um sorriso de lobo se formou em seus lábios.
- Você é a carta de salvação. A minha carta e a do seu namoradinho também.
Que diabos ele estava falando? No que é que eu poderia ser útil ?
- Pode ser mais específico?
Bufou.
- Não é você quem dá as ordens.
Sua mão caminhou até o cós de calça. Um objeto prateado foi sacado. Um revólver.
- Cacete! - Arregalei os olhos atônita.
A arma foi apontada para mim.
- Agora você vai ficar quietinha para o seu bem e para a minha consciência.

Não estávamos indo para o depósito do Dornas, afinal. E acredito que a estrada nem se quer era a mesma mas não parecia ficar assim tão longe.
Eu tremia convulsivamente. Quem me encontraria naquele fim de mundo. E onde estava Nicholas?
Paramos próximos à um casebre. Eu conhecia aquela casa. Como? Não sei. Mas ela me parecia familiar.
Não era muito grande, porém bem antiga. As teias de aranha tinham consumido as paredes de terra barroca.
Brian abriu minha porta, a arma em mãos. Puxou-me para fora, segurando meu braço com força demasiada.
Tropecei algumas vezes pelo caminho. Meu tornozelo ainda protestava.
Estávamos de frente à porta de madeira roída. Brian destravou a corrente e a porta rangeu. Parecia cenário de filme de terror.
O interior da casa era iluminado fracamente por lamparinas postas nas paredes.
O chão não passava de um tapete de folhas secas e poeira.
Brian me puxou para um cômodo que parecia um dia ter sido um quarto.
Tinha um armário velho, as paredes descascadas e algo que um dia fora a armação de uma cama, agora enferrujada pelo tempo.
O maluco do blackpower me empurrou no chão. Deslizei até bater as costas na armação de ferro.
Fechei os olhos com força tentando lidar com a dor que subiu por minha espinha.
Brian se ajoelhou ao meu lado. Uma corda em mãos.
- O que está fazendo!? - Era meio óbvio mas a pergunta meio que exigiu sair.
Ele passou a corda por minhas mãos. Prendendo-as para trás. E amarrou minha cintura aos pés da armação da cama.
- O que você fez com o Nick?
Será que ele estava em algum lugar naquela casa também?
- Não fiz nada com ele. Não se preocupe, se você colaborar tudo ficará bem.
Não me preocupar? Cuspi nele e imediatamente me arrependi do ato, assim que sua mão bateu de encontro ao meu rosto. Meus olhos se encheram de lágrimas quentes.
- Isso não ajuda em nada na sua situação atual! - Apertou minha bochecha me fazendo olhar pra ele. -Está me entendendo?
- S-sim - Gaguejei.
Ele passou a mão pelo meu rosto. Me afastei.
- Isso. Boa garota- Sorriu - Seu namoradinho não quer que eu te machuque mas isso só vai depender de você.
Mordi o lábio inferior.
- Não faça nada com o Nicholas, por favor!
Ele balançou a cabeça.
- Você não entendeu ainda, não é? Eu e ele estamos nessa juntos. Não vou fazer nada com ele.
O poder do entendimento me apunhalou.
- Está me dizendo que...Nicholas sabe que estou...que você está comigo...?
Assentiu.
- Como eu disse, você é nossa carta de salvação.
E antes que eu pudesse fazer mais perguntas, ele se foi fechando a porta atrás de si.
Eu estava tão ferrada. Não tinha a possibilidade de ninguém me encontrar. Ninguém!
O que minha mãe pensaria se eu não desse notícias amanhã? Ela enlouqueceria! E Cibelly? Meu Deus! Eu tinha de arrumar um jeito de sair dali.
E quando eu saísse eu iria acabar com o Nicholas. Aquele filho de uma puta! Traidor do cacete! E novamente eu estava sendo usada!
E como se meu peito não suportasse mais a dor, ela veio. Mais quente, mais avassaladora do que nunca.
Eu chorava por Richard, por minha mãe quando descobrisse que eu havia sumido, por Nicholas por ser um idiota e por mim, por acreditar tão facilmente na bondade das pessoas.
No final não tem ninguém que não te decepcione.

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