Portões do Inferno

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RICHARD LAURENT

- Boa sorte, cara - Julian desejou, correndo em direção à estrada.
Os homens de Brian não tinham nos visto. Deixamos a moto escondida em uma moita alta e viemos nos arrastando em meio aos arbustos.
Tinha uma maneira de entrar na casa pela parte de cima. Passei minha infância toda fazendo isso, por achar arriscado demais. Sim, Richard Laurent já foi um aventureiro, dos bons.
Escalei a árvore. Assim que chegasse ao quinto galho conseguiria pular dele para a janela do segundo andar, que daria no quarto dos meus pais. E dessa maneira aconteceu.
Tudo bem que eu estivesse um pouquinho enferrujado. Cheguei na sacada ofegante e com dores musculares. Qualquer esforço compensaria se isso significasse ter a Drayton de volta.
Não esperava que ela me perdoasse. Não precisava de seu perdão nem queria que ela ouvisse minhas explicações . Eram ridículas demais. Tolas demais. Patéticas demais... Kimberlly não precisaria saber de todas as mensagens de texto que escrevi naquela noite, mensagens,estas,que nunca cheguei à enviar. Não precisava saber de quantas vezes ensaiei meu pedido de desculpas em frente ao espelho, consciente de que seria em vão pois ela jamais me desculparia. Não precisava saber quantas vezes disquei seu número só para lembrar em seguida que ela não poderia me atender.
Sentir. Isso sempre foi meu ponto fraco. Não adiantava quantas vezes eu tentasse me enganar com a pose de homem frio que criei para afastar as pessoas, não adiantava quantas vezes eu fingisse não dar a mínima para o que acontecia ao redor. Eu sentia! Sentia de verdade. Vividamente. Sentia tanto que chegava à doer.
As vezes tudo o que eu queria era mandar aquela maldita mulher ir para o inferno , ela conseguia me deixar louco como ninguém! E ao mesmo tempo conseguia me deixar mais feliz do que em minha vida toda! E então eu percebia que seria capaz de explodir o inferno para salvá-la de lá. Ela era definitivamente a criatura mais estranha da face da Terra. E isso era simplesmente lindo...
Me peguei sorrindo bobamente com meus pensamentos. Eu era um idiota e meu tempo estava curto...
Bom...A casa tinha cheiro de mofo e a quantidade de poeira infiltrada nas paredes fez meu nariz coçar. Se mamãe visse isso agora,teria um surto.
A cama de madeira-comida pelos insetos- continuava no mesmo lugar. O resto não passava de teias, pó e folhas secas.
Um cenário bastante macabro, devo ressaltar. Imagino que Kimberlly facilmente teria feito alguma piada interna sobre a situação. Ela sempre fazia.
Nunca fui um cara nostálgico mas olhar para as paredes envelhecidas não me fazia bem. De maneira alguma.
Me arrastei até o alto da escada. Não poderia garantir que a madeira podre em baixo de meus pés seria capaz de sustentar o peso de uma pena, quem dirá o meu... Por isso tentei não fazer nenhum movimento brusco.
Por sorte consegui ouvir uma voz histérica vinda do andar de baixo que me deixou em posição de alerta.
- JÁ DISSE QUE NÃO É PRA DEIXAR NINGUÉM ENTRAR, PORRA! METE BALA!
Um dos homens assentiu e deu às costas à Brian que andava de um lado para o outro em visível ansiedade. Certamente ele se referia à Julian.
Cinco "soldados" permanecia montando guarda ao seu lado.
Oh! Ele tinha seguranças particulares agora! Que bonitinho.
Julian não iria conseguir distrair uma tropa sozinho. Onde estava com a cabeça em deixá-lo participar dessa loucura? A escolha foi dele, eu sei, mas como adulto e responsável, não devia permitir que ele fizesse algo assim. Talvez a parte do responsável só se encaixasse teoricamente, levando em consideração minha situação atual.
Precisava localizar Kimberlly e sair dali. Ela não estava em lugar algum na parte de cima. E eu não poderia descer sem ser visto.
Brian entrou no quarto de minha irmã... A escolta em sua cola.
Quem sabe se tomasse cuidado e descesse as escadas devagar...
Tirei os sapatos. Não estava afim de colocar meus pés no chão empoeirado, porém aquele era um caso de vida ou morte onde o orgulho devia imediatamente ser deixado de lado.
Quando pulei o último degrau, tentei dar uma espiada em Brian.
Vislumbrei Mellanie sentada e amordaçada em uma cadeira. Mas foi só. Quer dizer...Nada de Drayton.
Ela poderia estar em algum canto lá dentro, não é? Minha expectoração não tinha sido das melhores...mas mesmo assim, e se ela não estivesse lá dentro? Isso facilitaria as coisas?
No momento em que ouvi passos, tratei de me esconder no primeiro lugar que encontrei. Meu quarto.
O cômodo se encontrava tão sujo quanto o restante da casa. Meus olhos percorreram cada canto do quarto e pararam em um objeto específico. As cordas amarradas ao pé da cama enferrujada.
Segurei-as com as mãos trêmulas e fiz uma coisa bastante estúpida. Levei uma parte da corda até o nariz e expirei. Hidratante de morango.
Ela havia estado ali. No meu quarto. Esse tempo todo. Será que se dera conta de que seu cativeiro não passava da antiga casa dos Laurent?
Abri a porta com cautela, olhando para todos os lados antes de sair. Caminhei, pé ante pé, até o banheiro. Vazio.
Só restava a cozinha e a dispensa. A cozinha ficava de frente para o cômodo onde Brian e sua patrulha se escondiam. Seria difícil passar por eles sem ser pego.
Por isso optei pela dispensa. O cheiro era terrível, nauseante. Parecia que alguma coisa havia morrido ali dentro. E estava vazio à não ser por três tábuas de madeira e dois buracos com canos no chão, o que vi ali explicava o mau cheiro.
Kimberlly não poderia estar na cozinha, esta, ficava muito perto da porta central. Não seria possível que Brian fosse tão estúpido.
Meu celular vibrou. Era o número de emergência do Kellan.
Atendi.
- Me diga que não fez o que acho que fez! - Ele não soou satisfeito. E eu não esperava que estivesse.
- Estou aqui Kellan. Mas não vejo Kimberlly em lugar algum.
- Droga! Você vai colocar tudo à perder!
Balancei a cabeça como se ele pudesse ver o gesto.
- Ninguém me viu. Consegui entrar na casa.
- Vou sair daqui agora, está entendendo? Vou me entregar e salvar minha filha.
- Não vou deixar que se entregue. Não sabemos se ele cumprirá com o combinado. E não estou vendo a Kimberlly!
Aquilo já começava a me incomodar. Se Brian estivesse pensando em trapacear juro que arrancaria seus miolos e jogaria para os porcos na primeira oportunidade.
- Um passo em falso e estará colocando a vida dela em perigo. Não podemos correr esse risco, Richard.
Sim. Ele tinha razão. Minha ansiedade poderia colocar tudo à perder.
- Vou conseguir tirá-la daqui - Pensamentos positivos trazem coisas positivas. Kimberlly se orgulharia do meu esforço.
- Sozinho?
- Não... Julian está me ajudando. Julian Lonvery.
A expiração de Kellan foi audível.
- Ele vai se matar.
- O quê!? - Exclamei mais alto do que pretendia.
- Julian acha que é um herói. Pensa que pode salvar o mundo. Não consegue conviver com o fato de que a irmã morreu por causa dele.
Porra Richard. Onde. Você. Estava. Com. A. Cabeça? Ok, não adiantava me torturar agora?
- A irmã dele foi sequestrada por traficantes e a culpa foi dele. Imagino que Julian viu uma oportunidade de se redimir agora ou compensar o que fez. Por isso está te ajudando.
Fazia sentido. Eu sabia como era conviver com a culpa de sobrevivente e talvez uma parte de mim se identificasse com um lado de Julian. Talvez nossos objetivos fossem um pouco semelhantes.
- Mande seus homens com você. São o dobro dos de Brian. - Aconselhei. Ele não iria ceder tão fácil.
- Eu vou com eles. Não quero mais ser um covarde, Richard.
E desligou.
Ouvi um tiro não muito longe. Julian.
Só então me dei conta do metal frio em minha cintura. A arma que Kellan entregara à mim. Uma hora ou outra ela teria que ser usada. Para o bem ou para o mal.
Em aproximadamente dez minutos alguns dos homens de Kellan chegaram e o próprio Kellan também.
O resto do batalhão devia estar esperando por uma oportunidade.
Brian saiu na porta saudando à eles. Seus discípulos em seu encalço.
Pude ver tudo da janela do meu antigo quarto. O cômodo ao lado ainda devia estar fortemente vigiado.
- Ora, meu grande amigo Dornas Finning! Que prazer revê-lo.
Kellan engoliu um impropério. Percebi pela maneira como sua boca se comprimiu.
- Vai por mim Brian, o prazer é todo meu.
Tentei limpar melhor a janela para poder enxergar.
- Me sinto lisonjeado com a visita do maior traficante de Nova York!
Kellan respirou fundo, cerrando os olhos.
- Chega de joguinhos. Diga logo o que quer.
Brian deu um passo à frente, fingindo pensar no assunto. Se eu estivesse no lugar de Kellan teria atirado no idiota naquele momento.
- Quero o que é seu! Quero sua fama! - Deu mais alguns passos teatralmente - Mas você sabe que para que isso possa acontecer o rei precisa cair, não é?
- Você quer me matar e liderar no meu lugar.
Brian sorriu.
- Você não mexe só com o negócio do tráfico,Dornas, você tem barras de ouro ilegais. Sei que contrata os melhores escavadores para trabalhar em suas minas. E é dono dos maiores casinos clandestino da região. Você tem um exército para fazer o seu serviço sujo. Poderia facilmente dominar a América e se estender além disso. Poderia montar um império! Mas é burro o bastante pra não fazer isso! E eu tenho mais inteligência do que você. Saberia como usar o poder.
Talvez o Brian tivesse algum transtorno ou coisa do tipo.
- Eu só quero saber onde está a minha filha! - Ele falou as palavras devagar e auto o bastante para ecoar além da floresta.
Brian apenas levantou um canto da boca.
- Garanto que ela ficará bem.
- Eu quero vê-la!
Brian fez um aceno com a mão para um dos caras.
- Ronald, traga a garota.
Meu coração deu um salto. Espalmei o vidro da janela para evitar que minhas mãos tremessem.
Quando Ronald voltou, trazia consigo alguém do sexo feminino, um saco preto cobria a cabeça da mulher e suas mãos estavam amarradas em frente ao corpo.
Ronald a empurrou para cima de Brian. Ela tropeçou, mas o filho da mãe, a segurou à tempo.
- Pronto. Agora sou eu quem dou as ordens. - Porém, Brian continuava a segurá-la com firmeza.
Não. A mulher tinha a pele tão pálida quanto gesso. Poderia facilmente se passar por uma boneca de porcelana. Mas como o rosto estava escondido atrás do pano negro era impossível para qualquer um desatento, notar a diferença entre a suposta Kimberlly ali presente e a verdadeira Kimberlly. O vestido cor de rosa cobria metade dos joelhos, e os sapatos de salto baixo visivelmente haviam custado um rim. Nem de longe era a minha Drayton. Poderia jurar pela minha vida como era Mellanie ali.
E eu sabia que aquele era um truque de Brian para enganar Kellan. Mas por quê? Onde estava a Kimberlly, afinal?
Isso me colocava novamente na estaca zero!
- Posso falar com ela? - Kellan tentava ser cauteloso, mantendo a voz contida.
- Não há necessidade. Já está vendo que ela está aqui. Cumpri com a minha parte. Agora espero que cumpra com a sua.
Eu não podia mais ficar ali assistindo enquanto a merda batia no ventilador. Olhei para os lados, como se de repente uma ideia fosse surgir do nada.
- O que exatamente é a minha parte?
A falsa Kimberlly tremia e eu poderia apostar que estava chorando.
Mellanie nunca conseguia segurar uma barra por muito tempo.
Percebi quando Brian tirou um revólver da cintura. Seus capangas deram um passo à frente.
- Opa opa - Soltou uma risada - Não é pra tanto pessoal!
Ele colocou a arma no chão. Kellan franziu a testa com desconfiança.
- O que foi isso?
O sorriso de Brian se alargou.
- Pode pegar. Não tente nenhuma gracinha. - Kellan hesitou- Anda logo porra!
O pai de Kimberlly dobrou os joelhos no chão, em nenhum momento tirou os olhos do rival. Suas mãos seguraram a arma examinando o objeto, como se testasse seu peso.
- Agora você vai deixar bem claro para os seus empregadinhos que a partir de hoje eles trabalham pra mim! E depois dessa declaração você vai apertar a merda desse gatilho e apontar a maldita arma para o próprio peito. Entendeu bem?
Notei os ombros de Mellanie tremendo convulsivamente.
- Filha. - A voz de Kellan já não estava mais a calmaria dos últimos dez minutos. - Quero que você saiba que... Bem, eu não fui o melhor pai, nem de longe... Se pudesse ter feito as coisas de maneira diferente não pensaria duas vezes. Mas independente de tudo eu amo você e sua irmã e sua mãe. Vocês são as mulheres da minha vida. Eternamente. Sei que nunca vai me perdoar mas não precisa. Eu também não me perdoaria. Mas nada, NADA, é mais verdadeiro do que o meu amor por você. Hoje eu sei o que perdi. O peso do que fiz me atormenta todas as noites e...
Brian começou a bater palma.
- Lindo discurso. Agora atire!
Kellan mirou os olhos no idiota do blackpower ambulante.
- Deixe minha filha com Shawn. Ele é meu homem de confiança. Entregue-a a ele e eu faço o que me pede.
E gesticulou para um cara moreno, de semblante pouco simpático ao seu lado.
- Prometo fazer isso - Falou- Mas atire. Vai! ATIRE! - Bradou- Não quero ser obrigado a matá-lo eu mesmo.
Kellan levou o revólver ao peito. NÃO! NÃO! NÃO! Eles estavam enganando-o! E eu não poderia ajudar em nada. Se cometesse o erro de tentar sair lá fora, poderia acabar sendo descoberto, por isso apenas fechei os olhos com força.
Kellan não tinha sido a pessoa mais digna mas lutara pela filha até o fim. Se sacrificara por ela. E embora isso não minimize o fato de ele ter sido um péssimo pai, faz dele um homem melhor do que muitos.
Esperei pelo disparo. E ele veio. Veio com força e machucou meus ouvidos. Veio tão potente que minha cabeça repetia o som diversas vezes. E junto com ele, veio também uma gritaria insuportável.
O inferno havia explodido na Terra.



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