Bom Anfitrião

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  Entrar no apartamento de Richard fora do meu expediente era esquisito, e extremamente inapropriado. Sentia como se estivesse lá pela primeira vez. Era uma perspectiva totalmente diferente. Enquanto subíamos insisti que não havia necessidade nenhuma dele me deixar passar a noite ali, mas uma pequena parte minha estava assustada demais para ficar sozinha. E se aqueles caras fossem soltou e  soubessem onde eu morava?

Já estava incomodada em sentir que devia favores à Richard. A minha síndrome de donzela precisava acabar urgentemente.

- Seu estômago se estabilizou? - Perguntou colocando a chave da porta no gancho da parede em um gesto tão informal que me deixou impressionada.

- Ainda sinto que posso vomitar a qualquer momento. - Era verdade, embora estivesse me esforçando muito para manter esse pensamento distante.

- Bem, tome um banho. Posso deixar alguns remédios pra você na cabeceira da cama. - Então pareceu ter se dado conta do seu súbito surto de gentileza. - Você está fedendo à esgoto, Drayton.

- Espera, você realmente não vai dormir aqui? - Perguntei quando ele pegou uma caixa de primeiros socorros dentro do armário.

- Tenho um apartamento no quinto andar. No momento está desocupado, posso ficar por lá e qualquer emergência você me liga. Afinal, agora tem meu número.

Senti um divertimento pouco contido na última sentença. Provavelmente ele não iria me deixar esquecer essa situação do número...

Mas pera aí, ele tinha um apartamento? Por quê? De toda forma, o pouco que eu conhecia de Richard me indicava que perguntas à seu respeito eram estritamente ignoradas...

- Se eu pedir uma coisa, você vai me achar carente e deprimida? - Perguntei de súbito antes que pudesse pensar duas vezes.

- Não. - Semicerrei os olhos procurando por qualquer sinal de que estava falando sério. - Já te acho carente e deprimida o suficiente, e depois do áudio de hoje...

Ah. Ali estava ele.

- Tá, tá. Já entendi. - Revirei os olhos. - É que eu não quero ficar sozinha. E novamente sei que não deveria estar te colocando nessa situação mas... não tenho ninguém aqui, Richard. E por alguma razão confio em você.

Ele apenas assentiu como se estivesse cansado o suficiente para engatar uma discussão, e confesso que eu também estava.

- Como preferir. - disse simplesmente. - Vou preparar o seu banho. - Devo ter lhe lançado um olhar confuso porque suas bochechas ficaram vermelhas. - Acho que seria melhor. Para você relaxar.

Com certeza um banho quente era bem vindo, então não discuti quando Richard começou a encher a banheira. Fiquei observando pelo batente da porta seu corpo curvado sob o mármore branco, a camisa enrolada casualmente até os cotovelos, as mãos testando a temperatura da água até perceber que estava boa o suficiente. Era assustadoramente fascinante vê-lo tão a vontade, e mais assustador ainda era meu cérebro processando cada um dos ínfimos movimentos que Richard graciosamente executava. Observei ele passar por mim com um sorriso gentil demais para os seus padrões e retornar com uma camiseta azul bebê.

- Parece mais confortável do que esse vestido. - Seus olhos correram rapidamente pelo meu corpo e embora tenha sido um olhar despreocupado e sem interesse, senti meu rosto pegar fogo. Que merda estava acontecendo comigo?

- Ok, obrigada. - Peguei a peça de sua mão, e fechei a porta do banheiro antes que ele me fizesse corar mais uma vez.

A água quente me abraçou. Foi esse o sentimento quando me afundei na banheira e me permiti fechar os olhos. Senti meus músculos relaxarem um a um enquanto afastava meus pensamentos para bem longe. Desejei morar ali. Onde eu poderia afogar as últimas horas e afastar todos os temores. Não queria pensar no que aconteceu, no que quase aconteceu, mas minha mente era uma traidora, e as imagens distorcidas passaram como um flash, fervilhando, crescendo, se alargando, girando e girando. Joe, o cheiro do cigarro, suas mãos me apertando, a risada jacosa, o sangue viscoso...Sentia meu coração bater nas costelas, minhas unhas cravarem na palma das mãos. Estava escuro, escuro demais e quanto mais eu tentava gritar mais meus olhos se apertavam, sabia que meu corpo tremia, e por dentro eu chorava como uma criança. Tudo pesava, o medo, o choro que não vinha, a escuridão, meu corpo cansado e dolorido, minhas memórias, o cheiro dos sais de banho de alfazema, a voz.
A voz dele.
Era a melodia mais bonita que já tinha ouvido. Meu nome era um eco no vazio, feito apenas para que ele o pronunciasse. Eu estava alucinando, e caindo e...

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