Fiquei quatro dias colocando gelo, tomando remédio para dor e envolvendo gazes ao redor da minha mão. Pensei que não ia passar, mas passou, assim como os dias que não apareci no apartamento dele. Não tava a fim de falar com o Inácio, mesmo que pensar fosse inevitável.
— Canastra.
Seu Venceslau lembrou de mim. Disse que eu parecia estar dias sem dormir. Por dor, por pensar demais, por pensar no Akin. Pra ele eu ainda ficava zanzando na favela.
— Parece que hoje não é meu dia de sorte.
Larguei as cartas na mesa, massageando a mão esquerda. Deveria aceitar a sugestão da Luena e ir à UPA, mas no fundo me parecia bom sentir dor física.
— Três Canastras limpas em dois jogos. — Jogou na minha cara os seus feitos naquela tarde de sexta. — Tá precisando dormir um pouco mais, rapaz.
Concordei com ele.
Estava precisando de muitas coisas.
— Vou levar isso a sério.
Ele sorriu por trás da máscara hospitalar, da maneira mais carinhosa, algo que sempre mexia comigo quando eu estava ali. Amália permanecia sendo a pessoa que mais me conhecia e que me rejeitava. E depois do Seu Venceslau, Luena era a única pessoa que ria comigo.
— Perdeu de novo?
Sônia chegou de mansinho, analisando o jogo.
— E ele achando que podia ganhar de mim. — Aquele homem ia ficar se achando até o momento que infelizmente esqueceria daquele feito.
Troquei olhares com Sônia, enquanto os dedos enrugados e trêmulos voltaram a embaralhar as cartas.
— Melhor de três. — Ele estava bem animado.
— Não, não. — Sônia deu dois tapinhas de leve no seu ombro. — A Suzana já tá colocando a mesa do café. — Informou. O homem revirou os olhos de um jeito dramático. — Não faz assim. — A mulher o repreendeu.
Por trás das lentes, o senhor piscou os olhinhos para mim.
— Eu vou, mas por você. — Juntou as cartas em uma pilha. — E porque tô com fome.
Como sempre levantou da mesa e no passo dele atravessou a área externa. Ele parecia bem. Guardei as cartas na caixinha, me preparando pra ir embora, mas a presença da Sônia no lugar que era do Seu Venceslau mostrou que havia assunto para tratar.
— Será que podemos conversar? — Apoiou os cotovelos no piso entalhado no cimento da mesa.
— Depende.
Ela sorriu por trás do tecido florido da máscara.
— Não é nada de mais. — Cruzou a mão no ar fazendo pouco caso do provável assunto. — Só queria saber se você pensou na minha proposta. Como já estamos chegando em Novembro, soube que talvez as inscrições fiquem para o início do ano que vem.
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🏳️🌈| O Mar que Aqui Retorna
General FictionTobias é ex-presidiário e dependente químico que tenta retomar a vida no mesmo ritmo que o mundo retorna de uma pós pandemia. Através de reencontros, deseja refazer os laços com o filho e zelar pela vida de pessoas que um dia ajudaram ele, mas isso...