Capítulo 14

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Mãos

Os dois jovens caminharam de volta ao orfanato enquanto conversavam sobre coisas aleatórias, apenas para conhecerem melhor um ao outro. Bia descobriu que Guto, apelido que Gustavo a permitiu usar, perdeu seus pais em um acidente de carro, como ela, mas diferente do seu caso, Gustavo não tinha a melhor família de todas; seu pai era alcoólatra, e sua mãe pouco ligava para os filhos -Guto tinha um irmão, que também morreu no acidente–por tanto ele sofreu muito, por ter tido uma família ruim e por, depois, ficar sem família nenhuma. Ele foi para o mesmo abrigo que Bianca e ficou lá por dois anos, depois finalmente foi parar no orfanato Ariana Blair, onde está até hoje. Parece que Gabriel tinha razão, todos que vão para o abrigo da diretora Miranda está destinado ao Orfanato da tormenta, seria coincidência?
Bianca afastou aqueles pensamentos quando entrou na mansão, ela se despediu de Gustavo de uma maneira embaraçosa, queria pelo menos tê-lo abraçado, mas não teve coragem para isso, e pensar que tinha coragem para muitas outras coisas provavelmente muito mais perigosas, e não conseguia abraçar um simples garoto, teve que se contentar em vê-lo de costas subindo as escadas para os quartos dos meninos enquanto ela estava parada na base.
–Espero que não esteja planejando subir lá de novo. –A voz veio de algum lugar ao lado de Bianca, ela girou nos calcanhares para olhar a dona, já que era uma voz feminina. Era a diretora Irina, ela estava com uma sobrancelha erguida, esperando a resposta da garota.
–Não, eu não ia subir, só estava observando. –Ela achou melhor não contar que havia se despedido de Guto naquele instante, já estava com a reputação arruinada com a Diretora.
–Bom, venha comigo, aconteceu uma coisa, e as meninas vão precisar apoiar umas às outras. –Ela falou com descaso, como se estivesse sendo obrigada a demonstrar algum sentimento. Bianca ficou atônita, não compreendendo a situação, mas ainda assim seguiu a diretora até os quartos das meninas, no lado esquerdo da mansão.
As duas mulheres subiram as escadas, Bia apreensiva e Irina indiferente. Encontraram no caminho Alice chorando no chão, encostada a uma parede. Ela abraçava as próprias pernas, como quem tenta consolar a si mesma. Bianca correu em sua direção, se perguntando o que poderia ter acontecido, nunca tinha visto Alice daquela forma, ela se abaixou, pegou em suas mãos, sem perguntar o que aconteceu, Alice a olhou e a abraçou de súbito, as duas garotas nada falaram uma para a outra.
Irina seguiu a diante e entrou em um dos quartos, um que Bia não havia entrado ainda, haviam murmúrios saindo de lá, parecia que tinha várias pessoas.
–O que aconteceu Alice? Por que você está chorando? –Bia não queria ser indelicada com o momento pelo qual ela estava passando, mas precisava saber o que estava acontecendo, e não queria sair de perto de Alice para dar uma olhada no quarto. Alice ergueu a cabeça, seu rosto estava marcado por lágrimas, mas ela estava com o semblante sério, como se estivesse divagando.
–Ela se foi, Rebeca se matou, ela vinha pensando nisso a algum tempo, tentei convencê-la, mas ela fez mesmo assim. –Alice disse cada palavra com rouquidão na voz.
–Sinto muito que tenha passado por isso de novo, mas não desista ainda, nós vamos sair dessa, nós vamos conseguir. –Ângela saiu do quarto e viu as duas meninas sentadas no corredor.
–Alice, você está bem? Era amiga dela não era? –Ela se achegou, já pegando as mãos da garota para si, Bia decidiu deixa-las sozinhas, Ângela já era amiga de Alice a muito tempo, conversar com ela faria bem. Sua curiosidade a levou até o quarto onde tudo devia ter acontecido, todas as meninas estavam lá, chorando, com exceção de Roberta, ela não estava chorando, estava de olhos fechados, com o cenho franzido, como se estivesse sentindo alguma dor. A diretora Irina estava com o corpo da garota que se matou em seus braços, com um cobertor branco sobre o mesmo, sua expressão era completamente neutra, indiferente, não parecia demonstrar nenhum sentimento, qualquer que fosse. Ela pediu que todos se afastassem para que pudesse passar, quando obteve espaço, ela se foi, e Bianca foi atrás dela, a encontrando na sala, no andar de baixo.
–Diretora Irina, como consegue ser tão fria? A senhora está com o corpo de uma menina que se matou em seus braços, isso não a deixa nem um pouco perturbada? –A diretora, que estava caminhando, parou de súbito, e virou levemente apenas o rosto para o lado, para mostrar que estava dando atenção ao que a garota disse.
–Estamos em um orfanato Srta. Madison, para vir parar aqui, é necessário perder tudo, não é anormal desenvolver problemas psicológicos e optar por desistir de tudo, a senhorita deveria entender como Rebeca se sentia, não é mesmo? Eu posso parecer jovem, mas já tenho uma certa experiência, passei por isso outras vezes. –E com esta última frase, ela recomeçou a caminhar até sair pela porta da frente. Bianca deu os primeiros passos para segui-la quando foi interrompida por Sara.
–O que está fazendo? Você não pode sair do orfanato quando acontece algo como o que acabou de acontecer , a diretora Irina não nos permite.
–Mas ela tinha amigos, não vai haver um funeral? Uma despedida?
–Ela tinha amigos, mas não tinha família Bia, ela vai ser enterrada em um cemitério em algum lugar, como indigente.
–E você acredita mesmo nisso? –Bia ergueu uma sobrancelha para Sara.
–Bom, não há mais nada no que acreditar, então que diferença faz? –Sara suspirou pesado, sem esperar uma resposta para a pergunta. –Esse lugar está me matando, está matando a todos nós, pouco a pouco, e pode não haver nenhuma esperança para nós.
–Não fale dessa maneira. –Bia foi até a garota e pegou suas mãos. —Nós não podemos desistir, há sempre uma esperança, nós temos que continuar lutando Sara.
—Eu sei disso, mas não quero alimentar esperanças falsas! —A garota parecia prestes a chorar. —A esperança é um sentimento grande, mas a última e menor fagulha que se apaga é aquela que provoca a dor mais lancinante. Já basta tudo o que passamos aqui, não precisamos viver em uma utopia imaginária para no fim, descobrir que nada valeu a pena, isso seria demais, demais para suportar. –Ela já chorava escondendo o rosto com as mãos.
–Você não pode agir dessa maneira, quando conheci você, tinha certeza que era uma garota decidida e forte, você não pode aceitar uma derrota sem ter tido a chance de lutar para vencer. Nós estamos juntas nisso, todos nós, e precisamos ir até o fim. Lembra quando estava disposta a revirar esse lugar do avesso para conseguir respostas? É dessa garota que precisamos, é dessa Sara, e precisamos dela em todos nesse lugar, assim podemos ter uma chance, por isso nós não vamos desistir, entendeu? –Sara estava prestes a balançar a cabeça em concordância quando ouviram o som estranho vindo de fora. Bia olhou para trás e seguiu até a porta, sara ficou imóvel, esperando pelo que a garota veria.
–Bia abriu levemente a porta, e viu pela fresta um carro branco, onde Irina colocava o corpo de Rebeca, no banco de trás, ela procurou saber quem era o motorista, mas o fumê do vidro não permitiu, o que Bia viu foi ainda pior, o retrovisor direito do carro, estava quebrado. Ela afastou–se e, por um descuido, caiu sentada ao chão, atônita. Sara foi até ela.
–Você está bem? O que você viu? –Sara foi até a fresta da porta. –É apenas um carro Bianca.
–É o mesmo carro. –A garota respondeu. –É o carro da assistente social que me levou para o abrigo, como elas duas podem se conhecer? Ela não chegou a vir para esse lugar. –Sara a olhava séria.
–Você tem certeza disso?
–Sim, é o mesmo modelo, a mesma cor e tem o mesmo retrovisor quebrado, no lado direito.
–Mas como elas duas se conhecem? Seria coincidência?
–Duvido muito, nada é coincidência aqui, ela deve ter alguma relação com esse lugar, e nós vamos descobrir o que é.
–Sim, mas agora não, a diretora está voltando, vamos para cima. –Bianca obedeceu e as duas meninas foram descansar em seus quartos, o dia havia sido muito agitado e Bianca foi dormir com dor de cabeça, que piorou muito quando o sino da catedral tocou e ecoou em seus tímpanos o seu tilintar insuportável.

***

Bianca estava com falta de ar, seus pulmões queimavam implorando por oxigênio, ela abriu os olhos, quase saltando para fora devido à pressão em seu pescoço, estava sendo sufocada, e não podia se mexer. Haviam duas mãos negras gigantes segurando seus braços e pernas, e um par demãos pequenas, como as de um bebê, negras como carvão, que apertavam seu pescoço, estrangulando—a, apesar de pequenas, eram incrivelmente fortes. O desespero fez com que tentasse se debater, mas era impossível, as mãos grandes eram tão fortes quanto as de bebê, seus olhos olhavam para todos os lados, buscando a quem pedir socorro, mas ela estava sozinha em sua cama. Seus olhos começavam a desistir, e sua visão a escurecer, quando um vulto acinzentado pairou sobre seu corpo, ela olhava fixamente para a única coisa que podia ver, enquanto o vulto ganhava forma, e ela perdia cada vez mais a consciência. De repente, a esfera de luz cinza foi em direção ao peito de Bianca, transpassando pela epiderme de seu corpo, ela sentiu um misto de calor e frio, como se as duas temperaturas estivessem travando uma batalha em seu interior, as lágrimas escorriam fortemente pelos seus olhos, devido à pressão em seu pescoço. Vagarosamente, Bia sentiu o calor reconfortante tomar conta de si, as mãos em seu pescoço aliviando, permitindo que ela respirasse, aquelas que eram grandes e seguravam seu corpo sumiram, e ela conseguiu se mexer, a esfera de luz cinza saiu de seu peito, e Bia se sentou na cama tossindo freneticamente, sem tirar os olhos da esfera enquanto ela se transformava em um garoto, seus olhos se arregalaram em surpresa; era Miguel, o menino fantasma, amigo de Alice.
–Você está bem? –Ele perguntou, com o cenho franzido, sua transparência estava aumentando, e ele não tinha pés.
–Eu vou ficar, mas o que acabou de acontecer? –Bia estava um pouco desnorteada, encarando Miguel um pouco tonta.
–Você foi atacada, por algo que eu nunca tinha visto, não conhecia esse habitante, nem mesmo sei se é um.
–O que isso significa? –Ela perguntou atônita.
–Eu não lhe informar ao certo, mas estive olhando os arredores do orfanato, e vi algo muito assustador, uma criatura completamente negra, não sei ao certo oque ela é, mas é muito mais sombrio que qualquer habitante deste orfanato, acho que já a tinha visto antes, mas não sabia ao certo em que plano ela estava.
–Como assim em que plano? Existe outro plano além desse?
–Receio que sim, talvez. Os fantasmas, pelo menos os aprisionados aqui, conseguem ver muito mais do que os vivos, existem coisas que são visíveis somente aos nossos olhos, coisas que estão lá para nós, mas não para vocês, esse é o outro plano, eu o chamo de mundo de cinzas, por que é literalmente como ele é, apenas a versão mais sombria e podre das coisas terrenas. A coisa que eu vi, eu nunca a tinha visto em nenhum dos dois planos, e não acho que ela veio parar aqui por que está perdida.
–O que quer dizer? Alguém trouxe ela aqui? –Bia estava atônita, seria possível? Mas, pensando melhor, o que não seria possível?
–Provavelmente ela foi invocada, não sei por quem, mas suspeito que tenha sido alguém do quarto da diretora Irina, talvez ela mesma.
–Eu sinceramente não duvido nada, não acredito em nada que sai da boca daquela mulher, mas por que você acha isso?
–Eu não consigo entrar no quarto dela, é como se as paredes de lá fossem paredes no mundo das cinzas também, eu não consigo ultrapassa-las, acho que alguém não quer que ninguém entre lá, nem vivo nem morto. –A cor acinzentada de Miguel estava acabando, se esvaindo, ele estava sumindo, estava fraco, tinha acabado de lutar para salvar a vida de Bia, ele acredita nela, e em suas convicções, ele realmente acha que ela pode mudar as coisas.
–Você tem que ir né? Está desaparecendo, eu queria que Alice te visse de novo, ela precisa de você, principalmente agora. –Bianca abaixou o olhar, triste, faria bem para Alice ver Miguel novamente.
–Ela terá outras oportunidades de me ver, eu sei o que aconteceu, ela ficará bem, é uma garota forte, cuide dela por mim, eu vou desaparecer por um tempo, mas estarei te vigiando do outro lado, e a ela também.
–Espera! Foi você que me salvou agora a pouco, não foi? –Miguel deu um pequeno sorriso, e finalmente desapareceu por completo, deixando Bia sozinha no quarto novamente. –Obrigada. –Ela disse para o nada, sabendo que Miguel estaria em algum lugar ouvindo seu agradecimento.
Ela pensou em sair do orfanato, respirar ar puro, mas precisava tomar cuidado, Miguel a alertou da coisa que ronda fora do orfanato, ela não colocaria sua vida em risco por nada, precisava viver para conseguir respostas. E aliás, já que Roberta não estava aqui, Ângela provavelmente não estava em seu quarto também, e ela não queria incomodar mais uma vez as duas garotas, apenas esperava que elas estivessem dentro do orfanato, como da última vez, e que tivessem cuidado ao voltarem.

O Orfanato da TormentaDonde viven las historias. Descúbrelo ahora