Capítulo 18

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O Segredo do Cemitério

Ela caminhava às pressas, mas com cuidado para não chamar atenção, foi até o corredor masculino, no quarto de Gustavo, e bateu na porta, ela não queria entrar de súbito. Quem abriu a porta foi um outro garoto, moreno, de cabelos cacheados, Bia já o tinha visto várias vezes, é claro, mas nunca havia falado com ele.
–Gustavo está aqui? –Ela perguntou meio tímida.
–Está sim. –Ele respondeu simplista e saiu, dando espaço para Gustavo na porta, enquanto o alertava que ela não podia estar em um quero masculino àquela hora.
–Tenho certeza que há uma boa razão. –Ele respondeu ao garoto enquanto sorria para Bia.
–Com certeza há. –Ela disse. –Preciso que você é todos os outros garotos arrumem as suas coisas, nós vamos embora desse lugar. –O olhar de Gustavo foi estupefato.
–O que está acontecendo? –Foi tudo o que ele conseguiu perguntar.
–Vamos sair daqui Gustavo, ir embora para sempre. –E de estupefato seu olhar se transformou em um mirar triste com um sorriso ladino.
–Bia, não é possível sair daqui...
–Sim, é possível. –Ela o interrompeu. E eu descobri como, mas preciso que arrume suas coisas agora, você e os outros, nós vamos embora esta noite.
–Está falando sério?
–Nunca falei tão sério com você Gustavo, seja rápido, quando acabar se encontre com Alice, ela vai saber o que fazer.
–Tudo bem, vou convencer os outros, mas, Bia, por favor, não nos dê falsas esperanças, esse já é um sentimento escasso por aqui. –Ele a fitou com seriedade.
–Eu jamais daria falsas esperanças para você Gustavo. –Ela disse com ternura e beijou sua bochecha, sorriu para ele, e saiu dali, seguindo diretamente para o porão d'O Suicida.
Medo no momento era uma palavra que não tinha significado para Bia, na verdade, ela estava ansiosa, mas não com medo, ela precisava entrar naquele porão e não podia carregar consigo sentimentos ruins. Abriu as portas de entrada e desceu as escadas, entrando com segurança no local, tudo o que precisava era de um martelo ou algo parecido, qualquer coisa que pudesse usar para quebrar um túmulo de concreto. Para sua felicidade, era exatamente ali, como ela havia pensado, que a diretora guardava ferramentas comuns de casa, ela vasculhou todo o local até finalmente encontrar o martelo, que não era muito grande, mas não estava com tempo para procurar algo melhor, ela pegou o que estava disponível e saiu dali em direção ao cemitério, passou pelo bosque com muito receio, aquela sensação insistente de estar sendo observada por todos os lados, mas controlou suas emoções para não chamar a atenção de quem quer que a estivesse vigiando, ela não podia ceder agora, não agora que estava tão perto de se livrar de tudo aquilo. Bia saiu do meio das árvores com falta de ar, ela tinha prendido a respiração sem perceber, parou um instante para recuperar o fôlego, e então abriu o portão de ferro do cemitério. Ela olhou para a tumba de Ariana, a encarando como um falcão, ali estava a liberdade de todos. Sem hesitar, ela começou a desferir marteladas no cimento, destruindo pouco a pouco a lápide. Seus dedos estavam ficando machucados e ela estava perdendo as forças, mas batia freneticamente contra o túmulo, até finalmente ele desabar para dentro, revelando uma escada que descia para uma escuridão sem fim, ela não havia pensado nisso, e não podia voltar agora para procurar uma lanterna, ou algo para usar como tocha, toda a luz que tinha era a de seu celular, que não era muita. Lembrou—se de não dar espaço para o medo e, respirando fundo, ela desceu as escadas. Sua respiração ofegante fazia com que seu peito doesse, e o ar abafado, fétido e quente não ajudava a melhorar, ela conseguia ver pouca coisa com a luz fraca do celular, nada muito longe de onde sua mão alcançava, continuou descendo as escadas cautelosamente, até chegar ao fim, onde ela direcionou sua luz para as paredes e pôde ver as prateleiras, a sala era pequena, não mais que dois metros de largura e talvez três de comprimento, haviam três prateleiras, com urnas em todas elas, havia apenas um espaço vazio, provavelmente onde ficava a dela, Bianca não esperou nem um segundo a mais e começou a pegar todas as urnas e atira—las contra o chão, quebrando todas elas e recolhendo os cabelos, guardando—os em seus bolsos, por precaução, já que não tinha mais onde colocá—los. Ao quebrar todas, Bia ouviu o som do sino da catedral soar ricocheteando no eco da cidade vazia, instantaneamente, um súbito arrepio correu por todo o seu corpo, aquele pareceu um mal sinal, ela sentia um enorme embrulho no estômago, como se tivesse com uma ferida ardente naquele lugar. Subiu as escadas apressadamente, meio desnorteada, o som do sino pareceu despertar nela um pânico incontrolável, e ela murmurava para si mesma que estava tudo bem, tentando afastar aqueles que se alimentavam das suas fraquezas, mas ela lembrou—se que ter medo não te torna fraco, ter medo te torna humano, não ter coragem para enfrentar seus medos é que te torna fraco. Agarrando—se a esse pensamento como uma âncora para sua sanidade, ela seguiu, a passos rápidos, para o orfanato. Do chão de terra e raízes do bosque já surgia a densa névoa prateada que todos temiam, ela se apressou em sair o mais rapidamente que pudesse dali, sem olhar para trás, sem fazer perguntas, sem falar com ninguém, e finalmente saiu, entrando pela porta onde outrora havia flagrado Ângela e Roberta juntas, ela caminhou diretamente para o quarto de Katherine, a essa altura, os outros já deviam estar na catedral, entrou sem bater na porta e não encontrou ninguém a primeira vista, apenas o quarto com a cama totalmente bagunçada, com lençóis rasgados e tudo em um absoluto silêncio ensurdecedor, foi andando cautelosamente, procurando por algum vestígio de vida, quando na verdade, encontrou o da morte. Katherine estava jogada no chão, os olhos inertes sem vida e sem brilho, olhando para o nada que havia no teto, sua garganta estava cortada, assim como alguns furos na sua barriga que pareciam terem sido feitos por algo pontiagudo maior que uma faca, havia muito sangue ao redor de seu corpo, mas mesmo assim Bia foi até ela, já chorando desesperadamente, se abaixou e colocou—a em seus braços, soluçando sobre seu rosto pálido, não conseguia formular uma palavra para dizer adeus, apenas chorava como uma criança, passou às mãos pelos seus cabelos, agora totalmente branco—prateados, e depois pela sua testa, fechando seus olhos, ela sentiu o calor de seu corpo, quer dizer que ela morrera recentemente, e que o que a matou ainda poderia estar por perto, com uma enorme dor no peito, Bia acomodou ela no chão novamente, pegou as malas que estavam no canto e, com uma última olhada para trás, sussurrando um sôfrego "sinto muito, me desculpe", ela saiu do orfanato pela mesma porta que entrou e foi o mais depressa que pôde em direção a catedral.
As malas pesavam e machucavam suas mãos, em meio ao desespero para sair do orfanato, ela não tinha percebido o quanto estava cansada, agora, que estava sozinha no meio de uma rua, todo o esforço pareceu entrar no seu ser de uma só vez, seu coração batia tão forte que ela conseguia sentir as pontadas de dor no peito, não sabia por quanto tempo aguentaria continuar andando. No meio da estrada, ao relento da noite, um arrepio percorreu todo o seu corpo, como o calafrio de um vento gélido, e ela se deu conta da presença de alguém que a seguia, ao olhar para trás, viu, a alguns metros de distância a mesma criatura da noite anterior, e como naquela noite, ela se aproximava gradativamente mesmo com seus passos lentos, a voz da desistência já tentava ocupar os pensamentos de Bia, e ela já tentava se acostumar com a ideia de que ali seria seu fim, pelo menos conseguira salvar os outros, ela sorriu, e parou, ali mesmo, deixando as malas caírem no chão, sem se mexer, olhando para elas, esperando tudo acabar. As mãos de Alice foram direto nas de Bianca, e depois em uma das malas.
–O que você está fazendo? Pegue logo isso é vamos embora daqui, não vê que ele está chegando perto? –Bia ergueu seu olhar para ela e a abraçou instantaneamente, Alice retribuiu.
–Você sabe o que ele é? –Bia perguntou saindo do abraço.
–Não faço a menor ideia, mas não parece amigável, rápido, se apresse. –Bia pegou novamente as malas, sentindo dentro de si suas energias se renovarem, de uma maneira que ela jamais seria capaz de explicar.
As duas chegaram na catedral e foram recebidas por Gustavo, que estava esperando na porta e as ajudou com as malas.
–Vocês estão bem?
–Sim. –As duas responderam em uníssono.
–Como andam as coisas por aqui? –Bia quis saber.
–Bom, estão todos um tanto assustados, porém mais do que agradecidos por terem saído do orfanato da tormenta. Mas ainda restam algumas dúvidas que nos deixam preocupados.
–Como o que? –A garota indagou.
–Bom, a começar por como vamos viver aqui.
–Não é o pior lugar do mundo.
–Você não entendeu, como vamos sobreviver? Precisamos de água e comida. –Foi a vez de Alice entrar na conversa.
–Isso está sendo providenciado, mas até lá, Katherine e eu estocamos mantimentos suficientes para nos manter por alguns meses, até remédios básicos eu guardei na minha mala. –Gustavo ergueu as sobrancelhas, impressionado.
–Você estava tramando tudo isso com Katherine às escondidas?
–Bom, já fazia algum tempo que bolamos o plano, alguns meses atrás colocamos em prática, ela quem deu a ideia de nos refugiarmos aqui, apesar de eu insistir que precisávamos ir para o mais longe possível, mas ela garantiu que estaríamos seguros aqui e que precisávamos ficar por perto, talvez para salvar mais alguém que Irina pusesse no orfanato, não sei ao certo. –Ela despejou as informações todas de uma vez, e sem esperar os outros dois processarem tudo, lançou a Bia uma pergunta que a deixara sem resposta. –Aliás, onde ela está? Você não ia voltar com ela? –Os olhos de Bia se voltaram para o chão, pesados e cheios de tristeza, uma lágrima solitária correndo pelo seu rosto.
–Quando voltei do cemitério, fui direto para o seu quarto, e já a encontrei sem vida no chão. –Alice tapou a boca com as mãos, já em lágrimas também. –Eu sinto muito, não consegui salvá-la. –Foi a última frase que disse antes de desabar em soluços. Gustavo abraçou as duas meninas, com um triste olhar, ele amava Katherine como uma avó que ele nunca conheceu, e lágrimas silenciosas também caíram de seus olhos, enquanto abraçava Bianca, sussurrou em seu ouvido:
–Não foi sua culpa. –E ficaram ali, os três, consolando um ao outro.
No início da madrugada, com todos já se preparando para dormir, Bia finalmente pôde tomar um bom banho, ela abriu as malas que vinha trazendo, nelas haviam apenas roupas suas, nada de Katherine, lembrou—se de seu cabelo ficando branco, e ela dizendo que já esperava, que seu tempo estava acabando, talvez ela já soubesse da própria morte, talvez já esperasse o pior, por ter ido contra Irina. Ela procurou roupas confortáveis para dormir e encontrou alguns objetos entre as peças, seu celular, que ela nem percebera que estava sem, o quadro com a foto dela com sua mãe e uma folha de papel dobrada, um pouco amassada, que Bia pegou e abriu, revelando uma carta que Katherine havia deixado para ela. Com relutância, ela leu vagarosamente o que estava escrito:

Minha Bianca, não há tempo para muitas formalidades, apenas desejo que esta carta a encontre bem, escrevo ela às pressas e, por isso, não poderei contar tudo o que você deveria saber, mas, para início, quero que saiba que você possui duas mães, aquela que tenho certeza que cuidou de você com todo o amor que podia oferecer, e eu, a mãe que a colocou no mundo, mas que não teve a chance de acompanhar o seu crescimento, como você se tornou uma menina linda! Depois do que ela fez, uma coisa terrível aconteceu à minha primeira filha, e ela também foi tirada de mim, não sei dizer seu paradeiro, nem mesmo se está viva, mas quando descobri que estava grávida novamente, não pude deixar que acontecesse o mesmo com você, então armei uma fuga, e te mandei para longe com uma empregada que trabalhava na nossa casa, hoje chamado de Orfanato da Tormenta, nós tínhamos muitos, mas Ariana assassinou um a um, e agora eles são o que ficou conhecido como Os Habitantes, eles não podem sair do orfanato, ela os mantém presos assim como mantinha vocês, as urnas de cada um estão no túmulo de Victória, onde na verdade eu deveria estar, quebrar as leis da natureza nos traz consequências terríveis, sou a prova viva disso, mas se está lendo isso, quer dizer que já parti. Eu gostaria muito que você pudesse simplesmente fugir, mas não acho que seja realmente possível, por isso, você terá que lutar, e ser forte, pois deve vencer. Ariana e eu temos muito mais anos do que alguém deveria ter, como me arrependo de tudo o que já fiz, ela se sustenta usando os espíritos que aprisiona no orfanato, você precisa libertá­-los, assim ela vai perder seu alicerce, quando ela estiver fraca, ponha um fim nessa história que já deveria ter acabado a muitos anos. Ela é forte, não faça nada sozinha, una forças com os outros, eles também precisam de você, assim como você deles, dentro da catedral você estará segura, eu garanti que ela não pudesse tocá-la, tome cuidado com o sino. Por último, não confie em ninguém além das crianças com quem você conviveu, nunca se sabe quem está sob o controle de Ariana, tenha muito cuidado minha filha.

Sinto muito por colocar este fardo sobre seus ombros, mas eu já não posso fazer nada, com profundo pesar e, se me permite, sua mãe, Katherine.

Bia terminou de ler, sem dizer uma única palavra enquanto lia, dobrando o papel e guardando cuidadosamente na mala. Ela limpou as lágrimas silenciosas e se deitou, olhando para o teto da catedral.

—Já sei o que fazer, obrigado, mãe. —Ela sussurro essas palavras, e se pôs a finalmente descansar daquele longo dia.

O Orfanato da TormentaWhere stories live. Discover now