Capítulo 20

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O início de um recomeço

O plano já estava traçado, cada um sabia o que fazer, Bia contou o que era necessário saber segundo a carta de sua mãe, esperavam apenas o momento certo para que a criatura que os vigiava fora da catedral desaparecesse, e então começariam a agir. Com o badalar do sino, o monstro se foi, a noite começava a cair.
—Todos sabem o que têm que fazer, não podemos chegar de frente, vamos pelos fundos, direto para o cemitério, quebrem a tumba com o nome Ariana Blair e destruam tudo o que tiver dentro dela. –As palavras de Bianca eram inspiradoras, mas não extinguia todo o pavor que se passava nos corações de cada um, porém esse pavor também não diminuía a vontade de se libertar de tudo aquilo, todos sabiam pelo o que estavam lutando, e valeria a pena, mesmo que arriscassem as próprias vidas. –Lembrem-se de defender uns aos outros, e ficaremos todos bem. –A tensão crescia a medida que o momento se aproximava, íam a luta apenas com o que estavam ao seu alcance, com pedaços de madeira ou algumas peças de ferro enferrujado e envelhecido que encontraram pela catedral. E finalmente chegou a hora, todos se encaminhavam sorrateiramente pela grama alta, o silêncio da noite só se quebrava pelo farfalhar de seus passos no capim, Bianca avistou a cerca que contornava o cemitério, difícil de se enxergar, pois era negra como o céu acima deles, a única entrada era pelo portão que tinha frente, não tinham outra escolha se não ir por lá, e então se dirigiram, com a determinação de um batalhão, cada um sentindo como se estivessem em uma guerra pelas suas vidas, e afinal, estavam mesmo.
Assim que chegaram até o portão, Bia ergueu a mão, em sinal para que todos parassem.
–O que foi, Bia? –Gustavo perguntou, olhando para ela.
–Já chegamos até a fonte da fraqueza de Ariana, e não encontramos nenhum obstáculo, isso não está certo. –Ela se virou para Gustavo. –Tem alguma coisa errada.
–Bom, se não tem nada aqui, então melhor para a gente, certo? –Sara passou a frente, indo até o portão.
–Sara, tome cuidado, não conhecemos nada sobre as capacidades de Ariana. –Apesar do alerta, Sara tocou e tentou abrir o portão, assim que o fez, vozes, que pareciam vir de todos os lados, começaram a emergir em seus ouvidos, disparando freneticamente palavras desconexas, que ninguém conseguia entender, em um instante, surgiram figuras assombrosas, saindo por trás das árvores do bosque que ficava entre o cemitério e o orfanato. Bia reconhecia algumas, os tinha visto quando foi arrastada pelo sino da catedral até o reino das cinzas, mas agora não pareciam simples espíritos, estavam sombrios, com auras densas e agressivas, não estavam ali por acaso, aquela era a defesa de Ariana.
–Ariana sabia que viríamos hoje, é uma armadilha. –Bianca avisou os demais.
–Mas não dá mais pra fugir, agora é tudo ou nada, vamos ter que lutar. –Gustavo disparou para Bia, e ela sabia que ele estava certo, apenas consentiu e se prepararam para o ataque. Em um salto, os espectros sobrevoaram pela grama e circundaram ao redor do grupo reunido no portão, os deixando no meio de uma espécie de ciclone cinza escuro, com os vultos formando círculos em volta deles, estavam se espremendo uns nos outros, mantendo as armas na direção de fora, enquanto o ciclone diminuía a área ao redor, o medo aumentando exponencialmente dentro deles. Um dos espíritos pulou do ciclone para o grupo, transpassando um dos meninos, Bia apenas ouviu o som seco de seu corpo batendo contra o chão, seu estômago embrulhando, e a saliva ganhando um gosto amargo a medida que o pensamento de que poderia ter sido Gustavo se formava na sua mente, que mal conseguia raciocinar. Em um vislumbre rápido, ela olhou para a pessoa no chão e viu que não era Gustavo, mas um outro garoto, que ela não lembrava o nome, apesar da situação e de alguém estar ferido, isso a aliviou de algum modo, ela voltou o olhar para os espíritos que giravam ao seu redor, e então concentrou-se em seu objetivo, precisava salvar os outros, precisava fazer algo para ajudar, ela fechou seus olhos, segurou firme na barra de ferro que tinha em mãos, apertando até elas doerem, e então, assim que abriu os olhos, desferiu um golpe com toda a força que tinha, sentindo a barra deslizar no ar, sem tocar em nada, e, ao mesmo tempo, vendo um feixe de luz que se formou quando a mesma entrou no círculo de espectros. O flash foi rápido, mas todos conseguiram ver, ele desfez o ciclone, e os espíritos simplesmente sumiram em uma rajada de onda negra que se desintegrou no ar, o grupo ficou boquiaberto, sem saber explicar exatamente o que aconteceu, mas não importava, eles conseguiram sair, e não podiam perder tempo. Bia foi direto ao encontro do garoto, junto de outro garoto, os dois se abaixaram no chão e procuraram sentir a respiração do desacordado, ele respirava, mas fracamente, e seu corpo estava gélido, o garoto seu lado começou a chorar, e Bia não soube dizer se era de medo ou alívio. Eles chacoalharam o corpo do menino na grama, na tentativa de acorda-lo, mas nada acontecia, e Bia se deu conta.
–Ele não vai acordar. –Ela disse, parando de mexer no corpo do garoto.
–O quê? Como assim ele não vai acordar? Ele está respirando. –O menino a olhou desesperado.
–Pelo menos não sozinho, seu corpo está respirando, mas seu espírito não está aqui, ele foi tragado para o reino das cinzas, preciso ir busca-lo lá, mas primeiro, temos que terminar o que começamos. –Ela se levantou, empunhando a barra de ferro nas mãos. –Vamos, ele vai ficar bem.
–O garoto consentiu, e então se dirigiram ao portão. Na sua frente, guardando a entrada, estavam duas mulheres, que Bia reconhecia muito bem: a primeira era a assistente social que a tinha levado até aquele inferno, e a segunda era Ágatha, a diretora da escola, Bia já tinha pressentido que as duas faziam parte daquele show de horrores.
–Não passarão por este portão. –Abigail, a assistente social, vociferou.
–E são vocês quem vão nos impedir? –Bia rebateu. Abigail sorriu.
–Não nos subestime, garotinha, você deveria ter ficado quieta e se matado como todos os outros, em vez disso, causou todo esse motim.
–Então que bom que sou muito teimosa. –Sem mais palavras, Bia avançou na direção das duas, por algum motivo, sem sentir medo, sua alma estava leve como uma pluma, e ela seguia implacavelmente até as mulheres. Ágatha ergueu uma das mãos, e Bia sentiu um pequeno incômodo no peito, ela então franziu o cenho. As duas mulheres estavam rindo, por algum motivo. Ao olhar para trás, Bia viu seus amigos todos jogados contra o chão, gemendo de dor, com excessão de Alice, que continuava em pé, sem entender o que acontecia. As duas ficaram sérias ao ver que as meninas não sofriam com seus ataques.
–Parece que Victoria não as deixou desprotegidas. –Ágatha exclamou. Bia não entendeu o que ela quis dizer.
–Pare de machucá-los! –Ela gritou, indo na sua direção e atacando com a barra de ferro. Ágatha segurou com as mãos, e isso cortou o efeito que estava sobre seus amigos, eles se levantaram e avançaram também, Alice indo junto. Dessa vez Abigail ergueu as mãos, mas Bia a interceptou com um chute na perna esquerda que a fez cair no chão, os outros chegaram e Bia desferiu um golpe na cabeça de Abigail, que foi nocauteada instantaneamente, Ágatha viu a situação e fugiu em uma velocidade absurda, como se seus pés não tocassem o chão. Os garotos entraram no cemitério e começaram a destruir a lápide de Ariana e revelando a escada para o fundo escuro da tumba, apenas Bia entrou, os outros ficaram do lado de fora, para garantir que ninguém chegasse perto e também por que não era possível entrar todos de uma vez, era muito arriscado. Ela se deparou com uma sala imensa, parecia cobrir quase todo o subterrâneo do cemitério até a rua, mas não havia absolutamente nada ali, nenhuma urna, e nenhuma pessoa, apenas a sala vazia, não demorou para que Bia percebesse a situação. Ela voltou pelas escadas.
–E então, destruiu todas? –Gustavo perguntou ao vê-la saindo da tumba.
–Não, não tinha nada lá, estava completamente vazia. –Bia respondeu séria.
–Vazia? Então o que faremos agora? Não há como ganhar de Ariana sem destruir as urnas.
–Nós vamos destruí-las. –Bianca olhou para ele. –Ariana sabia que viríamos, ela deve estar com as urnas, dentro do orfanato da tormenta, teremos que voltar lá se quisermos vencer. –Ela disparou tudo de uma vez, todos ficaram atordoados, retornar ao orfanato era como escapar do matadouro e retornar por vontade própria.
–Já enfrentamos ela uma vez, e já decidimos que queremos nossa liberdade a qualquer custo, não há porquê hesitar agora. –Todos consentiram com a cabeça, estavam preparados para tudo. –Mas antes, precisamos voltar para a catedral, temos que cuidar dele. –Bia disse apontando para o garoto que ainda estava caído no chão.
Todos tomaram o caminho de volta para a catedral, Gustavo e outro garoto traziam o menino desacordado, Bia estava de olhos bem abertos, em prontidão para qualquer ataque surpresa, mas, por fim, eles chegaram a catedral sem problemas, além dos que traziam consigo. Todos se jogaram em algum lugar do recinto, finalmente podendo respirar profundamente e exacerbar o medo descomunal que estavam sentindo, alguns se permitindo ter tremores e outros desmaiando depois do alívio de estar longe do perigo. Bia, Gustavo e Alice foram para a cozinha, preparar alguma coisa para todos comerem e levando água para quem estava precisando, praticamente todos. Depois de alguns minutos de descanso, Bia se levantou e anunciou que iria entrar no sino para trazer de volta o garoto desacordado, a essa altura todos ali já sabiam como ele funcionava. Se reuniram envolta dele, Bia, Gustavo, Alice e Roberta, e com Roberta consequentemente estava Ângela, que jamais a deixaria sozinha depois de tudo aquilo. Esperaram o primeiro badalar do sino e então Bia o tocou, sendo imediatamente arrastada para o outro mundo. Ela acordou no orfanato, como da última vez, e rapidamente se levantou, a energia do ambiente estava extremamente pesada, opressora, ela sentia que precisava sair dali o mais rápido possível, e foi isso que fez. Chegou então ao lado de fora da mansão, procurando alguém que conhecesse, e viu Miguel, que estava próximo ao portão, esperando por ela.
–Como sabia que eu estava aqui? –Ela indagou, erguendo uma sobrancelha.
–Foi aqui que apareceu da última vez. –Ele rebateu simplista.
–E como sabia que eu estava vindo?
–Depois do que houve no cemitério, com certeza você voltaria aqui para procurar pelo garoto. –Bia franziu o cenho.
–Você estava lá? Por que não nos ajudou?
–Não posso, Ariana fez algo conosco, ficamos completamente sob o controle dela quando entramos no plano material, se eu tentasse ajudar, acabaria me virando contra vocês. –Bia compreendeu a situação acenando com a cabeça, ela confiava plenamente em Miguel.
–E você sabe onde ele está? O garoto que vim buscar? –Ele disse que sim com um aceno da cabeça.
–Ele está com ela, aquela mulher, ela o levou para a catedral. Como já sabe, ela estava aqui antes de todos, não posso lutar contra ela, se quiser mesmo o garoto, terá que ir sozinha Bianca, sinto muito. –Bia ficou séria.
–Você pode me acompanhar até a entrada, tenho medo de ser atacada pelos outros. –Miguel sorriu, Bia sabia que ele não podia protegê-la de tudo o que tinha ali, ela só queria uma companhia.
–É claro que posso. –Os dois seguiram o caminho até a catedral. Bia não conseguia parar de olhar para todos os lados, e pra o céu, era como um filme, o ambiente sombrio, frio e sem vida, o céu era como uma enorme nuvem cinza, como olhar para o nada, no espaço, porém sem nenhuma estrela ou rastro de luz, era um infinito viciante. Bia foi tirada de seus devaneios quando sentiu a mão de Miguel sobre seus ombros.
–Precisamos correr, Bianca, estão atrás de nós. –Bia olhou para trás e viu um grupo de fantasmas que os perseguia rapidamente, e começou a acompanhar o ritmo de Miguel, que aumentava gradativamente. Os dois chegaram rapidamente até a catedral, e Miguel ficou esperando na entrada, ele não estava confortável em ficar na presença daquela mulher. Bia seguiu para as escadas da catedral, que levam para o sino, onde ela sabia que a mulher estaria esperando. Assim que chegou lá, encontrou o garoto, sentado próximo ao sino, e a mulher ao lado dele.
–O seu corpo está lá em baixo, nós trouxemos para cá depois da luta, você já pode voltar. –Bia interrompeu, eles pareciam estar conversando. A mulher olhou para Bia, e depois para o garoto.
–Você deve ir agora, o sino pode tocar em qualquer instante. –O garoto sorriu para ela, acenou para Bia e desceu pelas escadas.
–Parecia ser uma conversa interessante. –Bia iniciou a fala com ela.
–Estava explicando para ele que ele não estava morto, e que ainda existia uma chance de voltar para o mundo dos vivos, desde que o sino não toque antes que ele volte, se não, sua alma seria desligada de seu corpo, e então estaria definitivamente morto. –Bia a encarou com seriedade, ela não estava surpresa com a bondade da mulher, já tinha suas suspeitas sobre seu passado.
–O sino acabou de tocar, acho que não vai acontecer de novo tão rapidamente, temos tempo para que me conte, afinal, quem é você? –A mulher sorriu.
–Meu nome, acho que você já conhece.
–Seu nome não é tudo o que quero saber, Tituba. Quero conhecer sua história, e o que você tem haver com Ariana, eu sei que você a conhece. –Bia estava cada vez mais séria.
–Eu mais do que a conheço, eu a amo. –Bia ficou boquiaberta.
–Não fique tão impressionada. Poucas pessoas são realmente ruins. Ariana faz tudo o que faz, por amor, e talvez por culpa. Melhor do que falar para você, é muito melhor que eu lhe mostre, assim não perderá tempo, e não correrá o risco de viver aqui para sempre. –A mulher se aproximou de Bia, que deu um passo para trás, e depois parou, esperando relutante pelo toque da mulher. Assim que o fez, os olhos de Bia se dilataram e ficaram opacos, em sua mente, uma grande luz cobriu sua visão.
A medida que a luz desaparecia, Bia percebia que não estava mais na catedral, o recinto se formava em um piso de madeira velha e úmida, com paredes do mesmo material em cores mortas, e então vou que não estava no mundo das cinzas, haviam cores ali. Havia uma cama, e, ao se aproximar, Bia viu uma garota, apenas uns 2 ou 3 anos mais nova que ela, parecia doente, estava muito suada. De repente, uma garota atravessou a porta do quarto, trazendo uma tigela com coisas dentro, Bia ergueu as mãos, pois pensou que a garota se chocaria contra ela, mas ela passou direto pelo seu corpo, nenhuma das duas pareceu notar sua presença também, então Bia se deu conta. À semelhança da garota, aquela era Ariana, e a outra que acabara de entrar, Tituba. A diferença entre as duas era nítida, Ariana era uma garota de alta classe social, e pelas vestes de Tituba, e considerando a época, ela era uma escrava da família. Tituba pegou um pano e molhou na tigela com água, colocando sobre a testa de Ariana, provavelmente para abaixar a febre, e então segurou sua mão, colocando junto de seu rosto.
–Ainda está quente, mas está abaixando. –Ela disse. –Você vai ficar bem logo, beba um pouco disso. –Ela levou um copo com alguma bebida até sua boca. De repente, a porta foi novamente aberta, de forma brusca, e um homem passou por ela, parecia ter uns 40 anos.
–Não dê suas poções malucas para minha filha, escrava, você não sabe o que elas podem fazer com ela. –O homem bateu no copo e ele voou pelo quarto, espalhando o líquido verde pelo chão.
–É apenas um chá de ervas meu senhor, não faria mal algum.
–Ela não precisa das suas ervas, precisa de Deus, eu estou orando por você minha filha. –Ele sussurrou perto de Ariana. –Agora limpe isso. –Ele apontou para o líquido verde no chão. –E depois vá até a igreja, os bancos estão muito sujos.
–Tituba apenas consentiu, e esperou que ele saísse. Assim que o fez, ela voltou-se para Ariana.
–Não se preocupe, você bebeu o suficiente, ficará bem logo meu amor.
–Obrigada Tina. Tome mais cuidado, ele não pode desconfiar de nós, tenho medo que algo aconteça com você. –Sua voz saia fraca, sem forças.
–Não se preocupe, eu terei mais cuidado. –As garotas sorriram uma para outra. Logo após, tudo em volta se distorceu, e então se refez novamente, e Bia se viu em uma grande sala, com muitos bancos velhos e um púlpito, aquela era provavelmente a igreja. Tituba entrou pela porta, dessa vez um pouco mais velha, já era adulta, trazendo consigo um balde e um esfregão, ela espalhou a água do balde pelo lugar e começou a esfregar o chão, devia ser ordem do reverendo. Passou-se alguns minutos e Ariana entrou pela porta.
–Precisa de ajuda Tina? –Ela perguntou para Tituba, trazia consigo um pano velho.
–Não se preocupe Ana, estou bem. –Tituba respondeu, mas era visível que estava um pouco cansada.
–Que bom que sei quando está mentindo. –Ariana sorriu, e Tituba devolveu o sorriso. Então as duas começaram a esfregar o chão da igreja. Quando acabaram, se aproximaram uma da outra, e se beijaram rapidamente, ao mesmo tempo que a porta foi aberta, e com um salto, as duas se separaram e olharam para a entrada, tinha uma menina parada lá, com um olhar sério, Ariana desfez a cara séria e assumiu uma postura mais aliviada.
–Não nos assuste assim, Victoria, eu quase morri do coração. –Bia congelou ao ouvir aquele nome, aquela era sua mãe, sua mãe biológica, mais de 300 anos atrás, ela parecia ser mais jovem que Bia naquela época.
–Precisam tomar mais cuidado, poderia ter sido qualquer um, e tenham respeito pela igreja. –A garota falou séria, mas com uma voz doce.
–Por que? Duas mulheres não podem se beijar na igreja?
–Ninguém pode se beijar na igreja Ana, vocês não estão se casando.
–Ainda não. –Ariana olhou para Tituba, que ficou corada e se encolheu atrás dela, ela sorriu, acariciando seus cabelos. Bia notou o quanto pareciam felizes, mesmo na época em que viviam, eram apenas pessoas comuns, sem nada de toda aquela loucura que estava vivendo atualmente.
Novamente, o ambiente se desfez em um borrão, e então se refez novamente, e Bia agora se encontrava em um quarto velho, com uma cama esfarrapada, uma porta e uma pequena janela, semelhante a uma prisão, aquele deveria ser o quarto de Tituba. Ariana e ela se materializaram na cama, as duas adultas agora, estavam se beijando, e Bia ficou com um pouco de vergonha por presenciar. Em um estrondo súbito, a porta se abriu e bateu contra a parede, dela saiu o reverendo, pai de Ariana, e flagrou as duas garotas no momento do beijo, Bia sentiu um embrulho no estômago.
–Como eu imaginava, vocês estão aqui, e cometendo essas perversões, um pecado como este jamais será perdoado.
–Papai por favor, tenha piedade, não estamos fazendo nada de errado. –Ariana suplicou de joelhos, e foi respondida por um tapa no rosto, que a fez cair no chão e ser ajudada por Tituba.
–Não fez nada de errado? E como explica o que acabei de ver? Sua abominação! –Ele se virou para Tituba. –Você, maldita escrava, a culpa disso tudo é sua! Como ousa ludibriar minha filha? –Ele desferiu outro tapa, dessa vez em Tituba.
–Pare! Por favor pai, pare com isso. Tituba não fez nada comigo, estou perfeitamente lúcida, eu a amo!
–Não fale heresias Ariana, está permitindo que o diabo possua você. Isso é tudo obra dessa escrava, você vai ter o que merece, já preparei seu destino, sua maldita. –Ariana abriu a boca para falar algo, mas antes que pudesse, vários homens entraram no quarto de uma só vez.
–É aqui que está a bruxa reverendo? –Um deles perguntou.
–Sim, é aquela escrava, deve ter aprendido suas feitiçarias na terra onde nasceu, ouvi dizer que todos por lá praticam essas atrocidades.
–Isso é mentira! –Ariana gritou para todos, eles viraram o olhar para ela.
–Ela está sob o efeito das feitiçarias da bruxa. –O reverendo também gritou.
–Seu monstro, atacando meninas inocentes. –Um dos homens acusou Tituba.
–Matem-na, para livrar a menina de sua bruxaria! –Outro gritou.
–Vamos queimá-la, o fogo vai purificar qualquer feitiço. –Mais um falou, e todos concordaram, em meio a um caos de gritos e força bruta, Tituba foi arrastada pelos homens, e Ariana incapacitada pelo reverendo.
Mais uma vez, tudo se desfez, e se refez em uma rua sem asfalto, com casas antigas ao redor. Haviam muitas pessoas, homens, mulheres e crianças, amontoadas no meio da rua. Ao atravessar a multidão, Bia viu um amontoado de galhos e madeira cortada, e em cima dele, Tituba estava amarrada a uma estaca. Um homem se aproximou, com um pedaço de madeira em chamas, e jogou no amontoado, incendiando todas elas, o fogo se alastrou para Tituba, e Bia virou o rosto e fechou os olhos, escutando apenas os gritos estridentes e agonizantes da mulher. Ao abrir os olhos novamente, ela já estava de volta na catedral, e a mulher continuava na sua frente.
–Ele te acusou de bruxaria e queimou você por não aceitar sua relação com Ariana. –Bia concluiu.
–Exatamente. E depois que isso explodiu, ele perdeu o controle, e não conseguia mais parar, muitas mulheres tiveram o mesmo caminho, pessoas inocentes morreram. Esse foi o real evento e o estopim que ficou conhecido como "As bruxas de Salém".
–Eu sinto muito por tudo o que aconteceu com você, com certeza merecia mais. Mas isso não justifica o que Ariana está fazendo para tentar trazê-la de volta.
–Eu sei que não, mas não posso pará-la. Depois que morri, Ariana viajou por todas as partes do mundo, obcecada por poder, aprendendo todos os tipos de magia e feitiços que podia, até que chegou longe de mais, onde os meios já não importavam para o objetivo, ela conseguiu selar minha alma nesse sino, para que não me perdesse e, quando tivesse poder suficiente, me trouxesse de volta, mas ela ficou imparável, Ariana já viveu bem mais do que deveria, e arrastou a irmã para esse pesadelo eterno, e no caminho, outras pessoas que ela não se importou de sacrificar, já passou da hora de pôr um fim nisso.
–E você não quer viver de novo? –Bia se sentiu insensível por perguntar, mas não conseguia acreditar que Tituba estava fazendo a coisa certa por vontade própria.
–Eu adoraria voltar a viver com Ariana, mas não a custo de tudo isso, já cometi erros demais, e permiti que ela fosse longe demais, ela precisa ser parada.
–Eu vou pará-la, só preciso saber como, ela é muito forte.
–Você herdou alguns dons de sua mãe Bianca, e isso a tem salvado até hoje, foi o que fez você conseguir chegar tão longe, se você usá-los da maneira correta, vai poder pôr um fim nisso tudo.
–E como posso aprender a usá-los?
–Você vai saber, quando mais precisar, seus dons irão aparecer. Agora você precisa ir, passou tempo demais aqui, o sino pode tocar a qualquer instante.
–Bia acenou para ela, novamente motivada e decidida a lutar.
–Obrigado Tituba, por tudo. –Ela acenou de volta. Bia não estava agradecendo por ela ter contado o passado de Ariana, mas por ter passado por tudo aquilo, e ainda assim estar disposta a fazer o que é certo, a bondade, mesmo sem reciprocidade, é a coisa mais bela que alguém pode ter. Ela foi até seu corpo, jogado ao chão próximo delas, e finalmente retornou.

O Orfanato da TormentaWhere stories live. Discover now