20 - Montanha-russa

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Acordar foi difícil.

Todo o processo de reconhecimento, de abrir os olhos e perceber que tudo o que acontecera anteriormente não era um sonho, do porquê eu estava onde estava, foi quase insuportável. Pisquei e engoli em seco, tentado ao máximo não começar a chorar quando percebi que a luz forte e o lugar imaculadamente branco em que eu me encontrava era um hospital.

Tinha acontecido, de verdade.

Pisquei outra vez antes de tomar coragem e encarar minha avó, que olhava para mim atentamente, provavelmente esperando tanto quanto eu que eu não chorasse. Sua presença ali podia significar poucas coisas, e nenhuma delas era muito boa.

Tentei prestar atenção em qualquer coisa, qualquer coisa que me distraísse do que eu sabia que estava prestes a ter que enfrentar. A decoração do quarto, uma janela grande na parede perto da minha cama, do lado aposto ao da minha avó, uma jarra cheia de água no criado mudo, intocada, ao lado de um buque de flores patético e sem propósito. A cama era confortável, dobrada para que eu ficasse quase sentada, os lençóis, limpos demais – era um hospital caro, um hospital providenciado pela minha avó. Sinal ruim.

A vista da janela era bonita. Lá fora, um dia claro e bonito, iluminado pelo sol. Eu conseguia ouvir o barulho dos carros na rua abaixo, alheios a mim e ao fato de que aquele parecia um dia ótimo, ótimo, para ir à praia.

– Oi. – Ela disse, pegando minha mão. Sua voz parecia cansada, rouca. Sinal ruim. – Como está se sentindo?

Minha avó usava uma roupa chique, rosa claro e sem um ponto amarrotado. Seu cabelo curto e loiro, quase branco, estava bem penteado, sem um fio fora do lugar. A julgar pela roupa, ela parecia prestes a fazer um discurso político em um palanque, mas suas olheiras, que não conseguiam desaparecer nem por debaixo da maquiagem cara, denunciavam seu verdadeiro estado. O rosto da minha avó parecia ter envelhecido vinte anos, e eu notei rugas que nunca havia reparado antes, e contei os pontos novos de seu rosto para não ter que pensar no que teria que enfrentar.

Apenas a encarei, esperando que ela me dissesse como eu deveria me sentir. Eu não sabia o que dizer, e tinha medo de começar a chorar se sequer abrisse a boca para tentar falar.

– Se lembra de alguma coisa? – Ela perguntou, doce demais, outro sinal ruim.

Demorei mais um pouco e mordi a bochecha. Eu não queria ter que perguntar, porque já sabia a resposta.

– Me lembro de tudo. – Respondi, me virando para encarar a janela, evitando o rosto apreensivo da minha avó.

– Teodora, eu sinto muito. – Ela disse, com os olhos marejados, e eu não precisei mais perguntar. – Não posso nem imaginar como deve ter sido terrível... Sua mãe...

Reprimi. Reprimi tudo que se passou dentro de mim naquele meio segundo, como se estivesse engolindo a droga de um furacão inteiro, e foi a coisa mais difícil que fiz.

– O que aconteceu? – Cortei, me virando para ela. – Depois que eu apaguei.

– Um garoto, Dylan, acho, foi o primeiro a te encontrar. Ouviu os gritos. A polícia e a ambulância chegaram logo depois, você deu muita sorte por aquele... Ele não esperava que você voltasse para casa, e estava muito bêbado quando você chegou. Você deu sorte, foi esperta. – Ela apertou minha mão com mais força. – Eles te deram 7 pontos na barriga, foi praticamente um arranhão. Você desmaiou pelo excesso de adrenalina. – Quando eu não disse nada, minha avó completou: – É comum, como quando as pessoas desmaiam em montanhas-russas.

– Como um passeio de montanha-russa. – Eu repeti, rindo de incredulidade enquanto me virava para a janela outra vez, e foi quando a primeira lágrima escapou, sem minha permissão.

– Sinto muito. – Ela repetiu e depois completou, com nojo: – Os advogados do seu avô estão fazendo de tudo para que aquele homem apodreça na cadeia, pelo que nos fez.

Não respondi e me desvencilhei do seu aperto em minha mão com cuidado. Sabia que minha avó provavelmente estava sofrendo pela perda da sua segunda e última filha, mas nem ela poderia entender o que se passava comigo – depois que meu pai havia nos deixado, minha mãe era tudo que eu tinha. Por muito tempo, nós nos ignoramos e fingimos que não éramos importantes uma para outra, machucadas demais com todo o abandono e orgulho para ceder... até que minha mãe finalmente cedeu, e nós fomos felizes.

Eu queria ter cedido antes.

Minha avó não poderia saber o que era ser abandonada e, depois de dez anos finalmente sentir algum conforto, para ser abandonada de novo, deixada sozinha outra vez. Ela não podia saber o que era perder o chão sobre os pés, e muito menos ver, a única base, o único apoio que eu tinha, coberto de sangue no chão do corredor, sem vida.

Era patético ter aquela última imagem da minha mãe, saber que agora meus avós eram meus guardiões legais e entender que absolutamente tudo que eu tinha antes, agora havia mudado. Eu não conseguia sentir raiva ou desespero, apenas um completo vazio – como se uma parte essencial de mim tivesse sido arrancada. Era um tipo diferente de sofrimento, um que eu nunca havia sentido antes.

Eu queria não ter acordado naquele hospital.

– Você tem visitas. – Minha avó disse, tentando amenizar o clima quando o silencio ficou insuportável demais. – Três amigos e o garoto. Ele está aqui desde ontem, não foi embora em nenhum momento. – Ela fez uma tentativa de sorriso e apontou para as flores. – Comprou isso para você na loja do hospital. – Quando não respondi, ela continuou: – Quer que eu chame algum deles?

Eram rosas amarelas, e combinavam perfeitamente com o dia claro lá fora. Provavelmente uma tentativa de me animar, me fazer sentir confortável – elas pareciam muito alegres para a ocasião, qualquer coisa parecia agora. Eram muito bonitas e Dylan sabia que eu provavelmente gostaria delas, daquela cor, diferente. Deviam ter custado uma fortuna naquele lugar.

Eu não senti nada.

– Não. – Respondi, depois de um longo segundo. – Quero ficar sozinha.

Ela fez menção de se retirar, e eu continuei olhando para a janela como se nada daquilo me afetasse, a unica lágrima agora seca em minha bochecha. No último segundo, no entanto, minha avó se inclinou mais uma vez na minha direção e perguntou:

– Como você está se sentindo?

– Estou bem. – Respondi, a olhando de relance.

Minha avó me lançou um sorriso contido, triste, antes de finalmente ceder e se encaminhar para a porta. Olhei para a janela outra vez, ignorando completamente o fato de que, assim como eu, ela sabia que aquilo era uma mentira.

Fazia um dia lindo, lá fora.

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gente o capitulo foi curtinho só pra fechar o fim da primeira parte do livro, ainda não sei quando vou postar a segunda porque pretendo escrever alguns capítulos antes, mas não vai demorar!! ps: eu amooo a segunda parte, espero q vocês gostem também.

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