[8] A CRUZADA DAS ALMAS

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Quando todos embarcaram, ela alçou a corda lodosa que ali estava e arrastou-os na direção das aguas que fazia o barco balançar, instável.

— Balancem — ditou a virgem.

Mas Innamabel olhou confusa para frente, tentando entender o porquê de terem pego barco se o objetivo era afundar no rio, porém não se negou. Ela moveu seu peso para o lado e ele foi contrabalanceado pelo peso de Dália e Taú, que estavam do outro. Repetiram o movimento uma e outra vez, fazendo com que o velho barco dançasse sobre as aguas, sendo o único barulho audível em meio a todo aquele silêncio. Balançaram eles, de um lado ao outro, insistentemente, aumentando cada vez mais. Innamabel acreditava que se tratasse de uma espécie de feitiço que a virgem conduzia a frente, talvez até uma armadilha para tê-los na água — que eram os seus domínios — mas não praguejou, apenas acreditava que pudesse ser tão memoravelmente doloroso quanto sua caminhada no Corredor rumo a luz branca que a destruiu.

Ela ofegou, e então, tudo ao seu redor tornou-se silencioso por um instante quando emborcaram a pequena embarcação rumo ao desconhecido. Mortais jamais estiveram naquele lugar, tampouco Sirus. Mesmo os encarnados não se aventuravam a perambular por aquelas aguas desconhecidas.

— Já podem tirar as suas talas... esse é domínio dos espíritos, e não mais o meu.

E eles fizeram, tirando os ares da jovem que nunca antes vira algo como aquela deslumbrante e macabra vista. Um oceano de aguas enegrecidas, um céu pálido e coberto por uma nevoa bruxuleante e multicolorida que guardava a visão de um imenso vale cercado por um par de montanhas muito distantes e uma luz branca semelhante ao sol, mas que era fria quando tocava em sua pele macia.

— Espantoso.

Valentin ergueu-se à frente do barco e se pôs a proa para que observassem, enquanto os outros dois olhavam ao redor, em direção as aguas que não pareciam ter fundo.

A virgem tomou a dianteira, guiava-os através da corda a nado, sem mudar seu rumo, sem se perder na direção das montanhas, a leste da luz branca.

Talvez fosse esse o caminho da alma morta, pensou Innamabel. Onde as suas crenças e as crenças de seus pais e de seus ancestrais cristãos achassem que fosse o caminho rumo aos céus e os braços do Senhor, seu Deus, após a morte do corpo físico.

Ela segurou firme numa das bordas enquanto a embarcação ainda oscilava pelas aguas, e assim como elas, tudo em seu interior também vibrava como as aguas plácidas que passavam diante deles. Tudo era muito silencioso, até mesmo sua mente mergulhava num perturbador silêncio que fez cessar as vozes em sua cabeça, os gritos, as faces pavorosas, e tudo foi substituído por uma ansiedade em sair daquelas aguas, daquele pequeno barco e voltar à terra firme onde sabia que estaria melhor cômoda, seca e segura.

— O que é esse lugar? — ela olhou em direção a um teto que parecia não ter fim, sendo que tudo acima de sua cabeça era tão escuro e alto.

— Esse é o Rio das Almas — correspondeu a entidade, de costas para todos eles. — Abaixo estão as almas destruídas por suas próprias ambições. Esse é o lar daqueles destinados a eterna punição, provados pela luz e pelas trevas dos Sete Domínios do Céu e do Inferno e rechaçados por sua ambição e seus incontáveis pecados. Esse é destino de todo assassino, corrupto e corruptor.

— Aproveite e regozije-se, Innamabel — propôs Valentin, desafiador.

Mas ela não entendia o que provocava o companheiro quando olhou para trás com tal crueldade no olhar e mergulhou uma das mãos no rio, criando uma faixa de aguas que só cessou quando ele a ergueu novamente e seus olhos congelaram com o que viu. Os braços dele tornaram-se apenas ossos, erguendo pelo pescoço algo deforme e com um pavoroso ganido, além do que se assemelhavam garras que gotejavam um pastoso liquido negro e o qual ele devorou ao rugir e abocanha-lo, despedaçando-o e atirando para fora os restos — como uma carne, porém, ao invés de sangue, uma flama azul-ciano que o fez lamber os dedos e ensebar toda a boca enquanto ria.

Sirus: Os Outros Vampiros (Vencedor #TheWattys2020)Onde histórias criam vida. Descubra agora