Capítulo Vinte e Dois

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RAFAEL MONTEIRO

Jantávamos num clima agradável. Minha mãe contava sobre um novo remédio experimental que começava a ser desenvolvido para o tratamento de TDAH. Meu pai vez e outra perguntava sobre os compostos e os possíveis benefícios e malefícios. Sem entender muito da conversa, me concentrei em comer.

Meus pensamentos estão presos na conversa do shopping. E na sensação de amargor, por mais que coma, ela não parece ir embora.

Brinco com a comida, sem fome. Na sexta-feira à noite, depois que Elena me deixou em casa, pensei em suas palavras e passei a ver a proposta do meu pai pela sua perspectiva. Poderia cursar administração e ir buscando cursos de desenho gráfico, animações ou qualquer outro.

Buscando sobre o curso de novo, dessa vez sem o estigma da imposição foi muito mais fácil enxergar os benefícios. Como Elena disse, poderia aplicar os fundamentos e conteúdos na futura vida profissional. Alinhar o que eu gosto com a tranquilidade que meus pais teriam. Sei que não gostaria de tudo no curso, mas independente da minha escolha, lidaria com isso.

Decido que é um bom momento para conversar com eles e fazer a proposta.

— Mãe, — corto a fala de minha mãe. — desculpa te interromper. Mas eu queria falar sobre a faculdade.

A palavra faculdade atrai a atenção imediata deles. Minha mãe, por mais compreensiva que seja, não gostava da minha "imobilidade", a falta de ambição a incomodava. E meu pai… Bom, o meu pai odiava eu ser tão perdido na vida.

— Depois de conversar com outra pessoa sobre a proposta de vocês, ela me fez pensar de forma diferente e… Eu decidi fazer administração — o alívio em seus rostos é imediato.

E noto que o meu também. Era um peso sobre meus ombros, me puxando para baixo, me fazendo ter a sensação de que todo mundo sabia o seu destino, enquanto eu ficava estagnado, assistindo todos encontrarem seu caminho.

— Porém — corto a empolgação deles. — tenho uma condição. — falo firme.

— Qual condição? — pergunta meu pai, já não tão feliz.

Foda-se, se vou fazer administração, ele vai ter que aceitar os meus termos.

— Se durante a graduação, eu me interessar por um outro curso, vocês vão ter que me deixar fazer.

— Nós vamos custear?

Minha mãe observava, sem dizer nada. Sinto que sou analisado. O que peço é arriscado e com altas chances de dar errado e tudo piorar. Entretanto, preciso confrontar o meu pai, não adianta ficar sendo cauteloso e abaixar a cabeça para suas neuras.

Ele sempre fez questão de apontar todos os meus erros, usando palavras duras. Contudo, na sexta vendo toda a dinâmica da casa dos Andrade, tomei a decisão de ser mais firme e não deixar que grite comigo ou me rotule de incapaz.

Sou capaz sim, as aulas de reforço provaram isso. Os exercícios respondidos certos, o entendimento da lógica por trás das fórmulas. Nunca discutirei física, a teoria do big bang ou buracos negros e por mais vezes que Elena explique sobre singularidade do espaço tempo.

Ao longo dessas semanas, não aprendi só física. Entendi também que sou bom em física, mas que não é e nunca será a minha vocação. Passando a fase de vestibular e o ensino médio pretendo nunca mais chegar perto de nenhum exercício, seja ele cinética, hidrostática ou qualquer outro segmento.

— Se estiver trabalhando, não.

— E se não tiver? — Meu pai queria todas as informações possíveis. Quase podia ver sua cabeça calculando os riscos. Pensando se valia a pena investir na minha proposta.

— Eu custeio. — Minha mãe quebra a negociação. — Já que Rafael aceitou a nossa sugestão, não vejo problemas em aceitar a dele.

— Tudo bem. Você faz administração e se gostar de algum curso a sua mãe paga.

Daniel parece feliz. Finalmente conseguimos alinhar uma parte de nossas diferenças. Minha mãe sorri, aliviada pela conversa não ter virado uma guerra.

Não acho que por causa disso a nossa relação vai se tornar maravilhosa, mas pode ser o começo de uma melhora. Sem ofensas.

— Pensou em algum curso? — Pergunta minha mãe.

— Quero aperfeiçoar meus desenhos, talvez desenho gráfico ou de games.

— E o passeio no shopping, como foi?

Ouvindo a pergunta da minha mãe lembro do pedido de Mateus.

— Foi bem. Mãe, conhece alguém da área de psicologia?

— Sim, por quê?

— O Mateus perguntou, ele acha que os pais precisam de terapia. E perguntou se você conhece alguém.

— Claro, ele deveria fazer algumas sessões.

Concordo e falo que direi a ele. Porém, as chances de ser ouvido são nulas.

Depois do jantar meus pais ficam na sala vendo filme e conversando e eu sigo para o meu quarto.

Assisto vídeos, desenho e perco tempo nas redes sociais. Mateus posta uma foto com os pais com a legenda: Família feliz. Meu amigo parece não notar que está se afundando por erro dos outros.

Quando estou indo dormir, Lúcia me manda mensagem.

Lúcia: Adivinha quem vai dormir na casa da namorada?

Lúcia: Euuuu!

Lúcia: Amanhã meus pais virão aqui e vamos almoçar juntos.

Rafael: Eu disse para você que ele ia ficar de boa. Foi o choque inicial.

Lúcia: Eu tô tão feliz.

Sorrio para o celular. Acompanhar Clara contando aos pais, se assumindo, assumindo o namoro com Lúcia, foi um momento difícil. Mas ver que tudo está se encaminhando para os devidos lugares é tranquilizante.

Lúcia: Só quero ver a cara dos pais da Clara quando conhecerem meus pais.

E por pais, Lúcia se refere ao pai, o companheiro do pai, a mãe e o companheiro da mãe. Quando a conheci os pais já estavam separados. Diferente do que pensava, a mãe de Lúcia lidou bem com a revelação do marido. Lúcia já se entendi como lésbica e foi o grande apoio do pai. Ao ouvir a história de seus pais pela primeira vez, não entendi como poderia funcionar e a mãe dela aceitar e conviver com o marido do seu ex-marido. Contudo, com o tempo aprendi que família não é igual para todos. E a dela não é menos que minha por não ser "tradicional".

Rafael: Vai ser muito liberalismo de uma vez só.

Lúcia: Medo deles retrocederem.

Rafael: Eles vão estranhar, mas não vão destratar seus pais.

Lúcia: Eu sei, vou deitar com a minha namorada para dormir. Tchau!

Me despeço de Lúcia, rindo da sua mensagem. Antes delas começarem a namorar nunca tinha pensado muito em como é a aceitação da família e que pequenas ações, tipo dormir na casa da namorada, jantar, andar de mãos dadas são importantes.

Para mim, sempre foi muito claro que teria tudo isso. Eu sabia que casais LGBTS passavam por todo o tipo de situação ruim. Mas saber e ver são bem diferentes.

Minhas amigas estão felizes. Eu estou mais leve sem o peso do futuro rondando a minha cabeça.

Com a cabeça e os ombros relaxados, durmo.

A física entre nós [CONCLUÍDO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora