Vazio

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Prólogo

Não havia a menor possibilidade de se estimar quanto tempo se passou desde que sua existência foi selada conforme convinha ao plano de seus adversários, mas a medida que sua consciência começou a vagar indefinidamente Gojo tomou esse fator como uma marcação sobre o quão deplorável era a sua condição.

Ele sabia que não deveria esperar ansiosamente por um resgate, essa era uma ideia improvável demais para se quer considerar uma opção e nem mesmo combinava com sua própria forma de pensar, ou pelo menos Satoru acreditava que não, lembrar-se do que costumava ser tornou-se confuso. 

Havia essa parte dele que lhe dizia que as pessoas considerariam seu aprisionamento como uma bênção, algo para se comemorar e não interferir. Ninguém gostava de um desequilíbrio natural andando pelo mundo, ou pelo menos gostavam tanto quanto amavam as maldições, não havia motivo para lutarem por alguém que poderia extermina-los com mais facilidade do que possuía em escolher um sabor de sorvete.

Antes haviam alguns nomes que lhe causavam alguma reação, como se fossem importantes em um bom sentido, como se fossem exceções que ele guardava em seu coração e pessoas que se importariam, que iriam contra o mundo para soltar um deus de moral questionável mais uma vez. Porém Gojo já não conseguia juntar a combinação de símbolos ou sons que formavam essas palavras e mesmo quando ainda conseguia, seus significados já haviam partido a muito tempo, não havia nenhum rosto ou sentimento para se associar.

Aquela coisa... como se chamava?

Ah sim, o vazio. O vazio por outro lado ganhava mais formas de se definir a cada instante. Provavelmente esse lugar era o extremo mais oposto possível a sua Expansão de Domínio, absolutamente nenhum sentido era estimulado, seus pensamentos apenas flutuavam ao seu redor até o momento que cérebro parasse de reagir por falta de impulso, algo que ele duvidava que aconteceria tão cedo.

Esse, consequentemente, foi o fator que o levou a quase saltar de sua alma, se isso fosse possível, quando um som ressoou por todo aquele espaço distorcido em que continuava a existir. Não havia um coração para sofrer um ataque cardíaco pelo susto, mas essa emoção, essa surpresa, a percepção de estar sentindo isso o comoveu como nada mais fazia. Embora ao mesmo tempo tenha lhe causado o questionamento sobre a possibilidade de ter passado tanto tempo inativo que se esqueceu sobre como soava a voz em sua cabeça.

No entanto, aquele som irregular, distante e inteligível não era familiar ao ponto de descartar essa opção no seu mais possível imediato. 

Satoru via a sequência ondulatória manchando sua quietude, uma vez, duas vezes e na terceira ele já não tinha escrúpulos para fingir que não se agarrou àquilo com toda a força que ainda havia em seu ser. Nada era compreensível a seja qual for a parte de si que conseguia percebe-la, mas ele perseguiu sua nova obsessão como um gato atrás um pontinho de luz e vasculhou cada canto de sua memória para atribuir sentido aos sons espaçados que o alcançavam.

De repente, lhe veio a compreensão de que sua mente havia se esquecido sobre como se era executado o simples ato de compreender a própria língua primaria. Isso explicava muita coisa ao seu eu distorcido, assim como também lhe dava um caminho por onde começar.

A lembrança de que ele não costumava tentar realizar tarefas diferentes por  ser muito bom em tudo o que fazia, sem que precisasse dedicar qualquer tipo de esforço na maioria das vezes, brilhou em sua consciência como um incentivo. Nesse momento, empenhado, desafiado e intrigado, não havia possibilidades para falhas.

"Perceba-se" - Disse a voz do além.

Não é nem preciso dizer o quão desapontado Gojo se sentiu com isso.

-"Perceba-se"? De que merda isso me serve?!

Agora sim ele podia dizer que se assustou com a própria voz, mas além disso, ver uma mão gesticulando na sua frente fez com que pulasse exageradamente para trás por instinto. Sua mão. Sua voz.

- Puta que pariu. - O feiticeiro disse seguido de uma sequencia de toques para verificar seu próprio corpo. Ele tinha um corpo agora. Havia voltado a ser um conjunto de matéria com coerência. Um sorriso enfeitou seus lábios por causa disso e quase de imediato a explicação clicou em sua mente, trazendo de volta seus traços de lógica. - Fala amaldiçoada, hein?

Embora seu atual estado fosse infinitamente melhor ao anterior, ele ainda não se sentia como si mesmo, tendo as lacunas de suas lembranças e de seu ser quase escancaradas diante de seus olhos. Satoru havia se percebido de fato, mas isso não mudou seu estado de selado em um lugar da qual não conseguia sair, o que lhe fez questionar a capacidade da pessoa do lado de fora e suas reais intenções. Se a criatura não possuía a força necessária para romper as barreiras, porque ter o trabalho de incomoda-lo? Sua antipatia foi automaticamente conquistada, ele não era um homem com hábitos de se apegar a inconvenientes fracos.  

Apenas por raiva, seu impulso o levou atacar sua prisão invisível. Nada aconteceu. Sem mencionar que ele se sentia como uma casca vazia, incapaz de alcançar qualquer resquício de capacidade sobre-humana para se libertar. Algo que com certeza fazia parte dos encantamentos do objeto amaldiçoado, mas que não diminuía seu estado de insatisfação.

Ondas sonoras soaram outra vez, mais claras, mais próximas, fáceis de se compreender.

"Me acompanhe.

Questionar essa criatura sem muitas evidencias de inteligência cansou sua razão, então ele apenas se deixou levar, tendo seu corpo guiado pela vontade do outro até que o vazio ao seu redor tornou-se menos espesso e o chão se formou embaixo de seus pés como algo sólido. Gojo percebeu que talvez estava errado no instante que sentiu a textura da madeira sob a qual se encontrava. Não havia como um mero usuário de fala amaldiçoada materializar qualquer coisa em um artefato tão sombrio, muito menos pelo lado de fora.

A sua frente, como rabiscos de um rascunho, começou a se formar uma porta de madeira bruta. Algo gracioso que deixava bem explicito o poder daquilo que se encontrava atrás dela. 

"Lembre-se."

A partir de então, sua mente e suas ações foram tomadas por uma onda de familiaridade infantil. Como se estivesse refazendo os passos de um filme que ele mesmo protagonizou.

Satoru abriu a porta.

Jujutsu Kaisen - Orbitando um buraco negroWhere stories live. Discover now