Sereias 🧜‍♀️

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17 de Outubro de 1756. A tripulação do navio pirata Anjo Negro estava em festa. Tinham finalmente derrotado, mais cedo, uma nau da Marinha Britânica que os vinha caçando há meses, desde que pilharam um vilarejo no litoral da Inglaterra. Os marujos brindavam com garrafas de rum roubadas do armazém dos ingleses naquela tarde e davam vivas ao Capitão Jimmy, que fumava um charuto em seu aposento, um tanto indiferente às lisonjas dos seus homens. Lá, ele contabilizava o ouro saqueado do navio inimigo.

Em meio a piadas e gargalhadas feitas pelos piratas bêbados, os marujos Declan e Smith conversavam entre si.
- Puxa vida, daria tudo pra ter uma mulher aqui à bordo. - comentou Declan, olhando para o horizonte - Sinto falta daquelas putas de Paris. Lembra, Smith?
- Ah, lembro, sim. Minha nossa... - respondeu Smith, depois de arrotar - Pena que não ponho os olhos numa mulher desde a última vez que estivemos em terra firme.
- Nem eu. - replicou o outro, bocejando - Quem sabe o capitão deixe a gente fazer uma parada em alguma ilha habitada por aí pra procurar umas garotas. - ele disse, rindo.
- Pois é. Tem boatos por aqui que alguns dos rapazes estão se deitando uns com os outros, por causa da falta de mulheres. Tem alguns que até parecem gostar. Quem sou eu pra julgar. - comentou Smith, tomando mais um gole de rum.

Mais tarde, os tripulantes foram se recolhendo para descansarem em suas redes. Alguns beberam tanto durante a comemoração que acabaram adormecendo ali mesmo, no chão do convés, e agora roncavam alto há um bom tempo.

Naquela noite, Declan acordou no meio da madrugada. Algo afligia seu interior. Ele sentia uma estranha necessidade que não podia saciar. Sua mente só pensava em mulheres, mulheres, mulheres...

Foi então que ele escutou algo que o fez questionar sua própria sanidade.
- Declan... Declan... Venha cá, garotão. Vem sentir meu calor...

A voz que dissera isso era feminina e doce. Parecia aquecer o coração resfriado do pirata. Um sorriso se esboçou em sua face. Declan olhou para os lados, atônito. A voz parecia ter vindo do mar.

- Declan... Vai me deixar sozinha aqui nesse frio? - indagou a voz, parecendo dessa vez um pouco carente.
- Cadê você, meu bem? - murmurou ele, falando baixo para não acordar os companheiros. Ele nem sabia bem com quem estava falando pois não via ninguém ali na água.
- Aqui embaixo, tolinho... - murmurou docemente aquela voz que parecia controlar o homem como a uma marionete. - Venha aqui na água... Não tenha medo... Queria tanto um beijo seu, meu herói...

Declan nem se importava mais se estava maluco ou se aquilo era mesmo real. Se, por acaso, fosse um sonho, que fosse um sonho bem aproveitado. Tratou de se esgueirar até a escada inferior do navio e começou a descer até a água. Ao encostar seu pé direito na água gelada, sussurrou sem saber a quem:
- Estou aqui, minha linda... Vim te ver... Por que não mostra seu rosto para mim?

Antes que o pirata pudesse colocar o outro pé no mar, dois braços magros mas muito fortes emergiram da água e taparam sua boca, impedindo-o de gritar por socorro. Em alguns instantes, o homem foi puxado para as profundezas do mar.

Na manhã seguinte, sob ordens do Capitão Jimmy, a tripulação já estava de pé logo cedo e se preparavam para seguir viagem.
- Rapazes, alguém aí viu o Declan? - perguntou Smith a alguns homens que puxavam as cordas do mastro.
- Aquele sujeito de barba loira? - perguntou um deles - Da última vez que o vi foi ontem, batendo um papo com você, se não me engano.
- Esquisito, a rede dele amanheceu vazia.
- Vai ver que as sereias pegaram ele! - riu um dos homens. - Meu velho me contava histórias macabras sobre esses bichos do mar quando eu era guri. Me borrava de medo!

Smith ignorou o comentário idiota e foi ter com o Capitão Jimmy, que examinava uma bússola dourada.
- Senhor capitão, algo me preocupa! - começou o marujo, já ficando aflito com o sumiço do amigo. - O marujo Declan sumiu! Ninguém sabe dele!

O capitão demorou a olhar Smith nos olhos. A cicatriz que cortava seu rosto o tornava mais intimidador. Alisando vagarosamente sua barba grisalha, ele respondeu:
- Eu sabia que mais cedo ou mais tarde algum covarde iria nos desertar! Aposto que a batalha de ontem foi demais para aquele verme!
- Mas, meu bom capitão...
- Vá trabalhar, Smith! Nós dois temos coisas mais importantes a fazer do que nos preocupar com um desertor de meia tigela!

Cabisbaixo, o tripulante ia voltar a varrer o chão do convés quando outro homem ali berrou, apontando para a água de olhos arregalados:
- Homem ao mar! Homem ao mar! Bem ali! É dos nossos!

Todos repentinamente interromperam o trabalho para irem averiguar a notícia.
- Será o pobre Declan?! - perguntou Smith aos colegas, mesmo sem nem ser ouvido por eles devido ao falatório que se armou ali. Até mesmo o carrancudo capitão expressou preocupação ao ouvir aquilo.

Dois dos marujos rapidamente foram escalados para embarcarem na pequena canoa acoplada ao navio e foram ao resgate do sujeito. Após o pegarem e colocarem-no na canoa, um dos salvadores gritou para o resto do Anjo Negro:
- É o Wilburn! Aquele rapaz que limpava os canhões e que sumiu há cinco dias!
- O safado sem dúvida tentou nos abandonar e foi merecidamente morto por tubarões! - vociferou o capitão, num misto de raiva e prazer.
- Mas, capitão! - começou Smith - Até onde sei, tubarões comem suas vítimas! E esse rapaz está aí, inteiro! E já é nosso segundo homem a sumir! O Declan desapareceu ontem!

Os tripulantes começaram a cochichar uns aos outros. O capitão se pôs a pensar, alisando sua barba. Até que ele tomou a palavra:
- Certo, homens! Só um tolo não perceberia o que está acontecendo aqui! A coroa britânica contratou um corsário para se passar por um dos nossos! E agora o cretino está matando nossos homens covardemente!

Um rebuliço se instalou entre a tripulação. Em poucos segundos, pelo menos três homens já estavam sendo acusados de serem o tal corsário.
- Eu sempre desconfiei de você, Pete! - urrou o cozinheiro do navio, apontando seu facão de cozinha para o marujo mencionado. - Aposto que você está com o rei! Vou lhe dar uma boca lição! - ele continuou, e enfiou sua lâmina no estômago de Pete, que engasgou e caiu morto, sem nem ter tempo de refutar a acusação.

Do outro lado do Anjo Negro, dois marujos discutiam porque um incriminava o outro.
- Não adianta esconder, rapaz! Eu já vi o seu diário de bordo! Aposto que são observações que você vai levar para o seu reizinho!
- Eu?! Olha só quem fala! Sua espada é igualzinha a dos soldados da marinha britânica!
- É porque roubei ela de um deles, seu palerma!

Não deu outra, os dois se desentenderam e começaram a lutar. Não demorou e os dois estavam mortos no chão.

As mortes e assassinatos que se sucederam causaram mais atrito ainda entre os piratas. Logo, a maioria deles já havia sido esganado ou apunhalado pelos próprios parceiros, enquanto o Capitão os amaldiçoava e os ameaçava para que parassem com a desordem. Ele mesmo desejava não ter disseminado aquele boato de corsário.

- Já chega! Já chega! - ele urrou, quase sem fôlego, atirando para o alto com sua pistola. - Já chega todos vocês! Antes que eu fique sem tripulação nenhuma!

Ao se darem conta, haviam apenas quatro homens: Smith, os dois marujos a quem ele perguntara sobre Declan e o capitão. Por sorte, Smith era amigo dos dois tripulantes sobreviventes.

- Está certo, homens! Já morreu muita gente por hoje! Vamos a alguma ilhota próxima procurar por mais pessoal!
- Não, capitão Jimmy! - rosnou Smith, cheio de rancor do maldito capitão que causara tanta discórdia e morte no Anjo Negro. - Seu tempo por aqui acabou! Você foi o capitão mais medíocre e patético que já existiu!
- Como ousa dizer isso de...

Foi então que um estouro interrompeu a fala do capitão, que olhou para seu peito a tempo de ver uma marca de bala que fazia escorrer sangue por seu corpo. Em seguida, caiu morto. Um dos colegas de Smith havia disparado contra ele com sua pistola.

Pouco depois, desovaram o nefasto comandante no mar. Felizes da vida, os três passaram a capitanear o Anjo Negro de forma igualitária e partiram atrás de uma nova tripulação.

A alguns metros de distância do navio, três cabeças humanas emergiram das águas. Uma delas olhou para as outras duas e murmurou:
- Nosso pai, Tritão, estava certo. Esses humanos estão sempre a um passo de se massacrarem. Só precisam de um empurrãozinho, que demos muito bem.
- Nosso trabalho com esses aí ainda não acabou, irmã. - pontuou a outra sereia. - Antes que a tripulação do Anjo Negro volte a ser numerosa, precisamos liquidar os três que restam. Tritão está farto de ver as maldades que esse maldito navio promove.

                       BONS PESADELOS

Contos de Terror e MonstrosWhere stories live. Discover now