DUPLICIDADE

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Duplicidade

Ethan

Havia muito tempo não se olhava no espelho. Talvez sequer se reconhecesse, talvez tivesse envelhecido alguns anos nesses meses.

Pra falar a verdade, nem sabia mais se era ele. Deixou de existir fazia algum tempo.

Desde que a voz assumiu o controle, passou a ver o mundo por uma parede de vidro, isso, quando via alguma coisa.

No início, gritou muito do outro lado. Bateu, socou e chutou tentando quebrá-lo. Mas ele nunca tinha mais que isso. Eram poucos segundos, semiconsciente antes da escuridão tomar conta.

O pesadelo passou a ser sua vida e já havia aceitado que não acordaria mais. Quando o fizesse, seria para se ver em outro lugar, esperava que longe dali.

Hoje, pela primeira vez a voz lhe deixou acordado. Foi difícil segurar a ansiedade. Seus olhos viram as ruas cobertas de neve, viram até o rosto das pessoas passando. A parede de vidro ainda estava ali, mas hoje ele até se sentou em um balcão quando parou para comer. Iludido, pensou que sentiria o gosto da comida, mas não. Esse corpo não lhe pertencia mais.

Esforçou-se para manter seus pensamentos silenciosos. A voz não gostava de lhe ouvir, achava que por isso, o mantinha largado no breu.

"Está apreciando o passeiozinho Ethan? Não pense que faço isso por você. Espero que se anime e decida viver mais um tempo, preciso que seu corpo dure mais do que havia me programado. Inútil." Sibilou arranhando sua consciência.

Ethan podia sentir dor e podia sentir medo.

Acreditava que isso era parte da ironia daquilo que se chama destino. Adiantaria reclamar que a vida é injusta? Ou pelo que fez a Isadora, era essa a justiça que merecia?

Perdeu o controle uma vez e acabou com uma vida inocente. Por consequência, era castigado a não controlar mais nada. A voz o fazia, quando queria.

- Mais um! – o ouviu dizer ao barmen. – Sem gelo.

O gosto amargo do uísque queimou sua garganta. Claro, esse gosto ele lhe deixaria sentir. Amargo.

Ele ficou rodando o copo vazio nas mãos, sentado ali em silêncio. Ethan via apenas o copo, o balcão de madeira lustrado e as garrafas dispostas no bar atrás.

Passados uns míseros segundos, uma mão que não era a sua, bateu com força no balcão e ele escutou uma voz muito familiar:

- Uma cerveja! Draft!

- Fale baixo que não sou surdo! – grasnou o barmen servindo o chopp ao homem.

A voz sibilou uma risada em seus ouvidos, sem motivo algum queria matar aquele homem. Ethan torceu para que fossem embora dali, ele não queria ver isso.

Soltou um silvo agradecido em pensamento, quando a voz deixou o dinheiro no balcão e desceu do banco. Uma morte a menos para assistir.

O homem bebendo o chopp impediu sua saída e o segurou pelo cotovelo.

Não, não faça isso, pensei inutilmente desejando que o homem me ouvisse. A voz sorriu cinicamente:

- Quem você pensa que é? Tire as mãos de mim.

- Sou Noah. – respondeu o homem de costas no bar, se virando de frente ao falar.

Ethan teria caído para trás se estivesse no domínio do seu corpo. O homem era igual a ele.

Idêntico ao seu eu que costumava se lembrar, da sua última recordação de um reflexo.

Era o mesmo olho quase preto, até o jeito de pentear o cabelo loiro escuro, bagunçando com gel.

Mas seria impossível, podiam existir duas pessoas iguais no mundo? Sem nenhum parentesco de sangue?

Por um momento, abandonou as indagações e tive inveja daquele seu eu. Ele era novo, igual a ele e livre. Livre para viver.

- Não seja mal-educado, Olaf. Aperte minha mão. – falou o seu reflexo sentado no banco, com um sorriso de escárnio.

Então esse era o nome da voz que lhe dominava. Olaf.

Lembrou mais uma vez do que meu pai disse no cemitério antes de Olaf forçá-lo a estourar a própria cabeça.

Algo que ele e sua mãe fizeram, um segredo que foi enterrado. Mas onde a garota se encaixava naquilo?

Noah manteve sua mão estendida mais alguns segundos e antes de recolhê-la notou um desenho em seu pulso, lembrava três letras V retorcidas, unidas em sua ponta, formando um círculo. Ethan observou Noah virar o resto da cerveja e ao ver que Olaf não responderia se encaminhou à porta. Mas antes que desse outro passo, viu suas mãos o segurando pelo pescoço, os dedos ficaram esbranquiçados onde o sangue deixou de correr pela força. Tentou fazer com que Olaf parasse, mas ali era um mero expectador dos atos de seu próprio corpo.

Noah arregalou os olhos e tossiu engasgado, ficava mais vermelho a cada segundo. Pôs suas mãos sobre as de Olaf e fincou a unha nelas tentando afrouxar o aperto. Ethan sentiu a pele se rasgar levemente e um filete de sangue escorreu por seus dedos. O homem idêntico a ele. parecia prestes a desmaiar, suas feições beiravam o desespero. Até que de súbito, Noah abriu um sorriso abandonando o medo de um instante atrás e desapareceu. Sua última fala pairava no ar:

- Isso é o melhor que pode fazer, Olaf? Estou decepcionado. Pensei que seria mais difícil.

O ódio percorreu suas veias quando Olaf se uniu a Ethan, sua raiva era tanta que ele desceu a parede de vidro que os mantinha separados. E Ethan temeu o que viria.

Deixaram o bar e do outro lado da rua havia uma escola. Torceu para não haver ninguém ali naquele horário, já era noite afinal. Estava quase deserto para o alívio de Ethan, mas então duas meninas saíram sozinhas, conversavam distraídas, riam alheias ao perigo rondando.

Ethan sabia o que Olaf faria. Iria se vingar, descontar seu ódio nas inocentes.

Para confirmar seu terror, elas entraram em uma esquina vazia.

Olaf fez com que deixassem de se mover a passos dados e flutuaram velozes no ar. Viu sua sombra refletida nos muros dos prédios, mas ninguém os via.

Ethan assustou-se com a forma que viu. Preferia que esse dia jamais tivesse acontecido, exceto pela descoberta que acabava de fazer com Noah.

Olaf voltou ao chão e os passos ressoaram no beco abandonado. Uma das meninas olhou para trás e levou a mão a boca. Olaf elevou o dedo até o lábio e fez sinal de silêncio.

No instante seguinte, Ethan desejou com toda sua força, ter nascido cego.

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=o = o =o 

Gennnte, o que acharam??? 

beijosss e até amanhã!

O Templo - Livro 2Onde as histórias ganham vida. Descobre agora