PRÓLOGO

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  HÍON


    Kraj estava de pé em frente ao velho Arcano acorrentado entre os pilares marcados com runas mágicas, que o deixavam sobre total controle. O ferimento da batalha contra Lia estava quase curado, havia recuperado sua pose altiva. Os olhos azuis fitando Dim sem piscar, o cabelo negro e ondulado penteado para trás com apenas alguns fios caindo sobre a testa alva.

    — Não perguntarei novamente, Arcano – sua voz firme ecoou pelo calabouço. Cada pedra ali fora minunciosamente coberta com magia para conter o poder do velho. – Como Sauly foi capaz de se blindar em sua dimensão?

    Dim levantou os olhos cansados para fitar seu captor. A barba longa e branca era um emaranhado sujo. As roupas imundas que usava eram mundanas para uma entidade nascida da pureza do Véu. Tossiu, respirou fundo. Ganhava tempo para pensar no que responderia ao meio-espectro.

    — Então... a Niffj conseguiu atravessar a fenda, não é? – falou, com a voz arrastada.

    — Não foi isso que perguntei – Kraj rebateu.

    — Está pensando em invadir Shinê, seu desgraçado? – O velho esforçou-se para sorrir. – Não terá êxito como teve aqui, em Híon. Posso ter falhado em proteger esse mundo, mas não o ajudarei de forma alguma a dominar outro. Além disso, a terceira dimensão está fora do alcance de qualquer um.

    — Não me tome como um idiota. Aquele meio-áureo jamais teria conseguido abrir uma fenda sozinho. Ela o ajudou, não foi?

    Kraj havia visto com os próprios olhos Barton mergulhar na bolha de luz branca com Lia nos braços. Aquela fenda poderia tê-los levado para qualquer lugar do Véu. Porém, tinha plena certeza de que o destino deles tinha sido Shinê, a terceira dimensão. Além disso Dim estava errado, Kraj não tinha nenhuma intensão de dominar outro mundo; mas havia alguém lá que lhe interessava muito.

    — Vamos fazer um acordo, Arcano – o yomei continuou. – Ou você me fala algo, ou ordenarei que cada vila humana nas sete regiões seja destruída. Pode viver a eternidade com o peso desse fato? Sabendo que milhões morreram por seu silêncio?

    A expressão do velho fechou-se como as nuvens pesadas de uma tempestade. Já havia se acostumado à vida de prisioneiro e já aceitara seu destino, mas, naquele momento, desejou ter seu poder pulsante de novo. Apenas por um segundo, para dar fim àquela criatura maligna que se exibia de queixo erguido diante dele.

    — Vocês yomeis são a corrupção da aura pura. – Ele cuspia as palavras banhadas em desdém. – Coisas como vocês nunca deveriam ter nascido.

    — É o que gostaria, não é? – Kraj chegou perto o suficiente para que Dim visse o mais profundo azul de seus olhos. – Vocês Arcanos adorariam que nossa espécie desaparecesse do universo, assim poderiam brilhar em seus tronos e esbanjar sua tirania. Não vai acontecer. Nayrú e você é que são os corrompidos. Quantas crianças yomeis você mandou matar, hein? Duas mil? Cinco mil?

    — Cale a boca, miserável!

    Kraj afastou-se novamente e colocou as mãos nos bolsos da calça preta. Estava ficando cansado daquela conversa fiada.

    — Não vou repetir de novo: diga algo ou todos os humanos de Híon vão morrer.

    Dim queria acreditar que ele não faria aquilo, mas o que o impediria? Kraj tinha poder sobre todas as sete regiões, cada uma comandada por poderosos Espectros escolhidos a dedo por ele. Bastaria uma ordem do Mestre das Sombras e os exércitos negros marchariam em direção de cada cidade e vila. Havia a resistência áurea, no entanto, não seria o suficiente para proteger aquelas pessoas. Então resolveu atender o pedido de Kraj, afinal, ele nada poderia fazer para chegar até Shinê.

    — Tudo bem – começou. – Direi apenas por que sei que será uma informação inútil para você. – Kraj esperou calado. – Sauly é mestre em manipular energia, melhor do que qualquer um de nós, Arcanos. Ela sempre foi boa em dominar os dons da aura amarela. Ela usou esse conhecimento para cobrir toda Shinê com seu poder, criando um escudo que selou todas as passagens dimensionais. Nem mesmo outro Arcano pode chegar até ela.

    — Então o meio-áureo... – Kraj quis concluir, mas foi interrompido.

    — Sauly deixou que ele passasse. Sabia o que estava acontecendo aqui.

    Kraj ficou pensativo. Se isso fosse mesmo verdade – e tinha certeza de que era –, alcançar Liana era impossível, mesmo para ele. Saberia que ela voltaria para terminar o que começou, mas faria isso acompanhada de um exército de Áureos. Não queria que as coisas terminassem em luta e sangue como da última vez. Tinha um problema.

    — E então? Não adiantou muito ameaçar meu povo, não é? – Dim o provocou.

    — Ameaças vazias – ele revelou. – Acha mesmo que mataria milhões por um motivo tão fútil? Não me compare a você Arcano.

    — E quanto aos milhões que morreram na guerra? – o velho indagou, com a cabeça cansada. – Quem os matou? Não foram lacaios sob suas ordens? Você mesmo?

    Kraj girou nos calcanhares para sair e deu as costas ao Arcano. Antes de caminhar disse:

    — Às vezes a guerra é necessária para haver paz. – Dado seu recado, ele saiu altivo da câmara, deixando ecoar pelas paredes de pedra o barulho de seus passos decididos.

    Quando a porta foi fechada atrás de si, o yomei encontrou Zarem, seu mais leal e antigo subordinado, um Espectro com a aparência de um sábio senhor de cabelos grisalhos e olhar cinzento. Era um rastreador de auras experiente e eficaz.

    — E Então – Kraj perguntou –, achou algo?

    O servo fez uma mesura em respeito a seu mestre e o acompanhou pelos corredores da fortaleza negra, os dois sendo iluminados apenas por tochas tremulantes nas paredes.

    Zarem suspirou e escondeu as mãos enrugadas nas mangas de suas longas vestes ritualísticas.

    — Sinto dizer, Grande Mestre, mas não pude localizar nenhuma abertura no Véu. Visitei o local onde a fenda foi aberta e não encontrei nada além de resíduos de partículas áureas.

    A notícia não surpreendeu Kraj, depois do que Dim dissera, não podia esperar que Zarem obtivesse algum resultado. Enquanto o velho Espectro continuava a reportar os testes que havia feito para justificar sua conclusão, o outro estava perdido em pensamentos e uma ideia surgiu em sua mente. Algo que consideraria loucura há alguns anos atrás, mas que agora considerava totalmente plausível se conseguisse chegar até Liana.

    — Meu caro, Zarem – ele interrompeu o falatório do rastreador. – Tenho outra missão para você. Essa muito maior, que daria apenas a você e a mais ninguém.

    Os dois pararam em frente as escadas que levavam ao grande salão do trono. Zarem fitou os olhos azuis de seu líder e esperou ansioso e apreensivo pela próxima ordem. Desde que a tal Niffj loira apareceu ele vinha se comportando de maneira diferente; estava mais preocupado e até displicente com seus deveres com as sete regiões. Quase não era o mesmo Kraj que venceu a Grande Guerra Áurea.

    — Diga, Mestre, em que posso lhe ser útil? – ele enfim disse.

    — Quero que tome meu lugar como líder de Híon. Quero que tome conta do meu império por um tempo – Kraj ordenou, segurando o velho pelos ombros. – Pode fazer isso por mim?

    Zarem ficou sem resposta, aturdido com a surpresa do momento. Ele, como mestre de Híon? Com todos os sete imperadores sob suas ordens? Era tentador, mas tinha que saber o motivo da decisão tão repentina.

    — Meu, senhor, o que pretende fazer? Por que isso agora?

    — Escute bem, velho amigo. – Ele soltou os ombros do outro e cruzou os braços sobre o peito, sentiu o amuleto de cabeça de touro comprimir-se contra a pele. – Preciso fazer algo importante e me ausentarei durante alguns dias, talvez meses. Não confio em mais ninguém além de você para a tarefa de me substituir.

    — Mas os imperadores podem não concordar com minha liderança... – Zarem titubeou. Já conhecia bem a ganância por poder que aqueles Espectros possuíam; muitos só esperavam um deslize de Kraj para tomar o trono.

    — Envie mensageiros para todas as sete regiões – Kraj retomou seu tom de voz autoritário. – Informe-os que a partir de hoje você será minha voz e punho. Se qualquer um deles desafiar sua autoridade, será castigado ao meu retorno.

    Perante tamanha imponência, Zarem não teve como discutir. E, além disso, não recusaria uma oferta tão generosa, ele seria o Espectro mais importante em toda aquela dimensão, pelo menos durante ausência de Kraj.

    — Como desejar, Grande Mestre.

    Kraj sorriu antes de dar uma última ordem ao rastreador:

    — Prepare Umbra e traga minha espada. Sairei o quanto antes.

    — Grande Mestre... – Zarem o chamou. Hesitou por um momento antes de completar a frase, Kraj poderia interpretar sua pergunta de forma errada. Mas logo tomou coragem e continuou: – Perdoe minha curiosidade, porém, preciso saber... Isso tudo tem a ver com aquela Niffj?

    O olhar do meio-espectro vagueou pelo rosto do velho. Ele sorriu novamente e balançou a cabeça suavemente em concordância.

    — Sim, meu amigo, tem tudo a ver com ela.

𝑨́𝒖𝒓𝒆𝒐𝒔 - 𝑺𝒆𝒈𝒖𝒏𝒅𝒂 𝑮𝒖𝒆𝒓𝒓𝒂Onde histórias criam vida. Descubra agora