{4} A PRIMEIRA CAMADA

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Híon

    Kraj ficou encarando as grandes rochas por um bom tempo, repassando pela décima vez todo o processo que faria em alguns instantes. Se errasse apenas um dos muitos detalhes, ficaria perdido para toda a eternidade entre as camadas dimensionais do Véu. Por isso ele parou, sentou-se com as pernas cruzadas no chão rochoso e respirou fundo, de olhos fechados.

    Umbra, que havia voado com seu mestre por centenas de quilômetros até ali, fitava-o atento sob o céu estrelado. A quimera alada estava pronta para seguir seu amo para onde quer que ele fosse, bastaria uma palavra.

    O lugar onde a magia seria executada era especial, único e também simbólico. Foi o ponto exato onde a fenda que trouxera Kraj para Híon fora aberta, há mais de 175 anos. Era uma antiga cidade humana, mas agora restavam apenas ruínas disformes e enegrecidas pelo calor da explosão gerada pela abertura do Véu.

    Estranhamente, três colunas de cristais negros haviam se formado bem no centro da cratera. Eram como três garras curvadas para dentro, um monumento que marcou a chegada do Mestre das Sombras à Terra. Era ali que ele estava sentado agora, pensando em tudo o que teve que fazer para conseguir o que tinha.

    Do que havia adiantado tantas conquistas se não pôde ter a maior delas: o coração de quem amava. Tinha conquistado toda uma dimensão para dar um lugar seguro para seu povo e achou que isso bastaria, que seria capaz de viver por séculos apenas para liderá-los. Estava enganado.

    Ficou de pé e olhou em volta os restos da cidade destruída. Quantas vidas humanas haviam sido perdidas ali? E quantas mais se perderiam na guerra que viria muito em breve?

    A lua cheia ia alto no céu, sua luz pálida projetava sombras traiçoeiras entre as ruas. Apesar da aparência de destruição e bagunça, aquele lugar, aquele ponto exato, era limpo de tudo. Todas as energias e essências foram expurgadas pela força bruta da energia do Véu quando foi a fenda abriu-se. Ali a existência era algo vazio.

    Não à toa aquela cidade fantasma era esquecida e temida por todos, ainda mais que outros lugares como aquele, que ainda tinham algo do antigo mundo. Mas era exatamente isso que Kraj procurava ali: desolação e vazio.

    A natureza estéril daquele sítio não foi o único efeito causado pela fenda instável que Kraj abrira. Havia algo bem mais peculiar que ele havia descoberto: a abertura brutal do Véu havia afinado os limites que dividiam as subdimensões dos espíritos.

    Sauly foi inteligente em blindar Shinê de todos os acessos que o Véu dispõe, afinal, é de lá que vem seu poder. No entanto, há lugares muito além do alcance dos Arcanos, camadas tão profundas do mundo não físico que nem mesmo os poderosos portadores da aura branca podem vigiar ou interferir. E assim como a energia do Véu, esses planos envolvem todas as três dimensões.

    Com sua espada Mahiban na cintura ela passou a ditar as palavras de ordem que o levariam para a primeira camada do Mundo Não Físico. Essa seria a etapa mais fácil, o plano mais raso do mundo dos espíritos. Já tinha certo costume em visitá-lo eventualmente, mesmo assim, não por muito tempo. O Mundo Não Físico era um lugar hostil e perigoso... até mesmo para ele.

    Como meio humano, Kraj tinha a habilidade de executar magia apesar de portar uma aura, o que lhe dava vantagem na execução de feitiços tão complexo como aquele. Ademais, usava no pescoço seu amplificador, um amuleto raro que multiplicava seu poder. Não demorou para seu corpo vibrar e as portas do mundo dos espíritos começarem a se abrir.

    — Volte para o palácio, Umbra – Kraj ordenou ao seu fiel companheiro. – Infelizmente não poderá me acompanhar nessa jornada.

    A grande fera alada sacudiu a cabeça emplumada, abriu as asas negras e deu um grito característico dos falcões. Ele protestava contra a decisão de seu mestre, mas nada podia fazer além de obedecê-lo. Sem opção, ele alçou voo sobre a cidade fantasma e sumiu entre as poucas nuvens que manchavam o céu noturno.

    Kraj lamentou não ter a companhia de seu mascote, porém, era impossível que Umbra, apesar de ser uma quimera forte, pudesse suportar a viajem até as profundezas das subdimensão dos espíritos.

    O yomei concentrou-se em terminar o feitiço. Sua aura negra o envolveu para protegê-lo enquanto passava pelas “portas”. Se alguém estivesse ali para testemunhar o momento, teria visto o corpo de Kraj simplesmente desparecer no centro da cratera, como um fantasma. Habitava agora a primeira camada do Mundo Não Físico, um lugar inalcançável para olhos comuns.

    A paisagem ainda era de uma cidade destruída e morta, uma cópia do mundo físico. Porém, sem cores ou calor. Tudo tremulava como se as paredes em ruínas, o chão e até mesmo o ar fossem feitos de sombras vivas. Mas era um engano achar que havia ar naquele lugar. Nada em carne e osso sobrevivia ali. Kraj só conseguia se manter de pé e consciente graças à magia e a aura que o cobriam, fazendo seu corpo aproximar-se da composição de um espírito.

    Deus dois passos e olhou em volta e para o alto. O silêncio era sua única companhia e assim seria até alcançar o próximo nível. Iria cada vez mais fundo até chegar ao seu objetivo.

    Caminhou pelas ruas oscilantes da cidade sombria até achar um dos muitos túneis escuros que ligavam os vários pontos do Mundo Não Físico. Era por eles que Kiro viajava com sua habilidade para caminhar pelo mundo dos espíritos. Mas até mesmo ele evitava as camadas mais profundas.

    A abertura do túnel ficava em um pedaço de muro de tijolos escuros. Era como um vórtice de energia cinza, que girava eternamente para dentro de si mesmo. Kraj não fazia ideia que poder era aquele. Não era nenhuma aura, tão pouco a energia do Véu. Era algo diferente. Talvez os portadores da aura amarela soubessem. Os Soma eram capazes de visitar a terra sem matéria, mas quase nunca o faziam.

    Sem mais delongas, Kraj caminhou para dentro do túnel. Um, dois, três passos, e seu corpo foi tragado por aquela força. Lançado para um plano mais fundo. Onde seres nunca vistos habitavam.

𝑨́𝒖𝒓𝒆𝒐𝒔 - 𝑺𝒆𝒈𝒖𝒏𝒅𝒂 𝑮𝒖𝒆𝒓𝒓𝒂Onde histórias criam vida. Descubra agora