{1} DESPERTAR EM UM NOVO MUNDO

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    — Hoje é o seu dia, filha. É uma grande honra para os Elenor...

    Beraal fitava a pequena Liana, vestida com as calças justas e blusa apertada nas mangas – roupas de menino segundo ela. A garota estava com a cara emburrada e os braços cruzados, se olhando no espelho comprido, cercada por meia dúzia de serviçais que a arrumaram daquela forma. Como odiava seu cabelo preso em uma trança atrás da cabeça.

    — Eu não ligo para esse negócio de honra – ela reclamou. – Só estou aceitando ir para trazer Lara de volta pra casa.

    O rei suspirou e pediu que as serviçais saíssem. Tianí, uma das criadas responsáveis por cuidar da pequena princesa, deu um beijo na testa da garota antes de deixá-la a sós com seu pai.

    — Seja forte, minha pequena – disse ela.

    Quando ficaram sozinhos, Beraal abriu ainda mais as cortinas do luxuoso quarto. Deixou a luz do sol entrar e banhar o piso e as paredes cor de creme. Sentou-se na cama e chamou a filha para perto. Liana, ainda emburrada, saltou para o colo do pai e ficou brincando com bracelete em seu pulso, com a cabeça baixa.

    — Você já tem dez anos, Lia – ele começou acariciando o fios loiros da trança da menina. – Conversamos sobre isso dezenas de vezes e você me prometeu que cooperaria.

    — Mas eu não quero essa coisa em mim... Essa... aura. Não quero ir embora.

    — Algumas coisas não dependem da nossa vontade, filha. Elas simplesmente acontecem porque precisam acontecer. Sabe como é raro é nascerem dois Áureos em uma mesma família na mesma geração? – ele falou em tom de admiração e com a voz cheia de orgulho. – Você e sua irmã são duas garotinhas muito especiais e não vieram ao mundo com esse poder à toa.

    — A mamãe vai chorar muito quando eu for embora – murmurou a pequena.

    De fato, a rainha Deaneira não havia recebido bem a notícia de que sua segunda filha também seria levada para o treinamento áureo no Palácio da Luz. Isolara-se de todos e, quando aparecia, tinha os vermelhos e mergulhados em lágrimas dolorosas. Antes de rainha de Yvrim, ela era mãe, e como mãe não havia dor maior que saber que provavelmente nunca mais veria suas duas meninas.

    — Ela está triste, sim, mas eu cuidarei dela e estaremos sempre aqui, esperando por vocês duas. Sempre. – Ele envolveu a garotinha com seus braços largos, em um abraço carinhoso. As lágrimas ameaçaram brotar, mas ele as conteve; Liana já se sentia mal pela mãe, não podia piorar as coisas. Quando ela fosse embora, teria toda a eternidade para ficar triste.

    — Será que Lara vai se lembrar de mim? – Lia perguntou erguendo o olhar para o pai. – Faz tanto tempo que ela se foi...

    — Foram só dois anos, princesinha. Não é tanto tempo.

    — Alum disse que o tempo é diferente para os Áureos.

    — É verdade, mas isso não quer dizer que sua irmã perdeu a memória depois de dois anos. – Ele forçou um sorriso para abrandar a situação.

    A garota desvencilhou-se do pai e saltou para pegar sua pequena bolsa com alguns pertences que considerava importantes para a viajem. Ao lado da bolsa, descansava uma luxuosa espada banhada em ouro com o cabo cravejado com as mais preciosas pedras das minas yvrinianas; um presente que ganhara de um dos reis de Yvrim, nas comemorações do dia anterior.

    — Eu tenho mesmo que levar isso? – indagou mostrando a arma afiada. – É tão extravagante.

    — É bom levar, pode precisar de uma arma de qualidade como essa. Mas tome cuidado.

    Sem dizer mais nada, a pequena caminhou decidida até a janela e apontou para um buraco na parede com a forma perfeita de seu punho. Tinha feito aquilo em um acesso de raiva com a notícia de queria que teria que deixar os pais. Sua aura aflorara com a emoção e golpe saiu descontrolado e poderoso.

    — Olha isso, papai – disse mostrando a marca. – Eu não preciso de armas. Essa coisa dentro de mim me faz parecer um mostro. Já viu cor dos meus olhos quando eu fico com raiva?

    — Isso é normal para os Áureos, querida e você não é nenhum mostro. – Ele levantou-se e segurou a filha pelos ombros. – Esse é só um dos seus dons. Dados a você pela entidade do Véu. Deveria sentir-se grata.

    — Por quê? Isso só está me afastando de vocês.

    Ele abaixou a cabeça, seu coração pesou. Já ia retrucar quando ouviu batidas na porta.

    — Meu rei, eles chegaram – anunciou Tianí, do lado de fora.

    — Está na hora, meu bem. – A voz de Beraal era embargada, mas firme. – Pegue suas coisas e vamos até o quarto de sua mãe para você se despedir dela.

    Os grandes olhos cor de mel de Liana, ficaram ainda maiores quando ela os arregalou com o susto do momento. Estava com medo.

    — É hora de ir, princesinha...

°°°

    Lia abriu os olhos em um impulso logo que acordou, com um espasmo.

    — Mamãe! Papai! – chamou, desesperada. – Lara...

    Sua voz foi ficando cada vez mais baixa à medida que recobrava a consciência e os tristes fatos de sua vida voltavam aos poucos: sua mãe e pai haviam morrido há muito tempo, e Lara... Onde estava Lara?

    Olhou em volta para situar-se. Estava deitada em uma cama estreita, coberta com lençóis brancos. Havia duas poltronas de couro próximas a uma janela larga emoldurada por cortinas de um verde claro e pacífico. Ao lado da cama, fixados à parede, duas pequenas telas exibiam gráficos e números incompreensíveis para ela. Sentiu uma dor fina no braço quando tentou erguê-lo para tocá-lo.

    Uma agulha a espetava, ligada a uma mangueira transparente finíssima. Estou em um hospital?, perguntou-se, embora aquilo não aparentasse ser um centro médico, não fosse os aparelhos e cama em que repousava.

    Quando ergueu o outro braço debaixo das cobertas, viu sua mão esquerda enfaixada, foi quando lembrou-se da luta contra Kraj, lembrava vagamente de Barton tentando ajudá-la, mas depois disso só havia um borrão vermelho. Não. Havia algo mais. Lembrava de Kraj drenando sua aura para interromper o efeito mortal do Vermelho Sangue.

    “Você vai ficar bem agora, Liana”, foi o que ele dissera antes de apagar. Kraj havia salvado sua vida?

    E quanto a Barton? Ela tinha recordações de muita luz e de um beijo com gosto de sangue. Ele havia sobrevivido?

    Lia respirou fundo para se levantar, preparando-se para sentir a dor viajar por seu corpo destroçado pela batalha, porém, para sua surpresa, sentou-se sem muita dificuldade e sem qualquer dor. Sentia-se bem. A mão quebrada, apesar de completamente coberta também não doía nada.

    Ainda curiosa para saber onde estava, ela arrancou a agulha do braço e ficou de pé, ouvindo o bipe irritante que a tela emitia. Cambaleou por uns instantes, sentiu-se tonta por ter estado deitada por tanto tempo, as pernas falharam e ela precisou se apoiar na cama novamente. Quando o sangue voltou a fluir normalmente pelo corpo na vertical, caminhou devagar até a janela.

    Perdeu o fôlego com a paisagem que se estendia diante de seus olhos. Via prédios enormes apontando para o céu azul, uma floresta de vidro e aço até onde os olhos podiam alcançar. Descobriu que estava em um prédio também, ainda mais alto do que os que podia ver dali. Havia objetos voando por toda parte, pareciam pequenos visto de longe, mas Lia tinha certeza de que eram muito grandes. No chão, muito lá embaixo, as ruas fervilhavam com pessoas indo e vindo, quase invisíveis vistas do alto.

    — Onde estou? – murmurou com o rosto colado no vidro.

    — Está acorda mesmo – uma voz feminina a sobressaltou. Uma mulher jovem de cabelos brancos como neve, rosto fino e olhar pragmático entrou no quarto sem aviso e tentou segurar a mão de Lia, para guiá-la de volta para a cama. – Venha, você não pode...

    Por puro instinto, a Áurea girou o corpo e prendeu a mão desconhecida que tentava tocá-la. Torceu o braço da mulher, tinha a intenção de prendê-la contra a parede, mas não teve êxito. Chamou por sua aura Niffj e não obteve resposta; a tontura voltou com o esforço e ela desabou sentada e ofegante em uma das poltronas. Não estava tão bem quanto pensava.

    — Calma. O que pensa que está fazendo? – perguntou a mulher, desvencilhando-se da pegada de Lia como se ela fosse uma criança. – Sua aura está muito fraca. Não se esforce tanto.

    — Onde... estou? Que lugar é esse? – ela conseguiu repetir a pergunta de antes, ofegando.

    — É o Centro de Especialidades Médicas de Alva – a mulher respondeu com objetividade. Tirou um pequeno aparelho retangular do bolso do jaleco e encostou-o no pulso de Lia para verificar os batimentos cardíacos. – Meu nome é Dana Okinson, chefe do departamento de casos especiais.

    Lia fez uma careta de confusão, não havia entendido nem metade do que a mulher havia dito, além do seu nome: Dana.

    — Dana, vou perguntar algo mais simples. Tente responder resumidamente, estou completamente perdida. – Parou para tomar fôlego de novo. – Em que dimensão estamos?

    A médica franziu o cenho como se estivesse diante de um dos malucos do centro da cidade, que se dizem viajantes no tempo e adoram atormentar os transeuntes com perguntas como: Em que ano estamos? Onde posso encontrar bateria para minha máquina do tempo? No entanto, havia se esquecido que aquela Niffj era, de fato, uma estrangeira dimensional.

    — Estamos em Shinê – respondeu da forma mais resumida que conseguiu, como Lia havia pedido.

    — Shinê... – ela repetiu, como um sussurro de eco. – O garoto... havia um garoto comigo? Onde ele está? Está vivo?

    — Calma. Calma. Ele está bem. O meio-áureo fica com você o tempo todo nesse quarto. Ele deve ter ido ao refeitório para o almoço.

    Lia se permitiu relaxar um pouco. Barton estava vivo. O alívio durou pouco. Quando passou a mão no pulso direito e procurou seu bracelete, viu que ele não estava lá.

    — Meu bracelete. Perdi meu bracelete! – exclamou ela, olhando em volta, como se a joia fosse estar bem ao seu alcance. – Eu não posso perdê-lo, era da minha mãe!

    — Escute, você tem que se acalmar. Volte para a cama ou vai acabar desmaiando.

    Lia não queria se acalmar. Não queria voltar para a cama. E não ligava se acabaria com a cara no chão. Só queria seu bracelete de volta. Será que o havia deixado cair durante a luta contra Kraj? E se nunca mais o achasse?

    — Não posso perdê-lo. – Decidida, ela se levantou e rumou para a porta. Dana a seguiu, repreendo-a. Mas antes que as duas pudessem chegar ao corredor, uma mulher alta, de cabelos castanhos ondulados e caminhar imponente, bloqueou a passagem.

    — Você não o perdeu, Liana.

    De início, Lia pensou se tratar de outra médica ou enfermeira, porém, o vestido branco e justo não era roupa apropriada para alguém que trabalhasse ali. Sua aura estava fraca, mas ainda assim, conseguiu sentir o poder pulsando vindo dela. Logo não teve dúvidas de quem era:

    — Sauly.

    — Siga o conselho de Dana e volte a se deitar – a Arcana falou, ignorando a surpresa da Áurea. – Você ainda não está totalmente recuperada.

    A médica deitou a aturdida Lia de volta para a cama e reconectou os aparelhos de monitoramento. Ela e Sauly cochicharam algo em um canto; em circunstâncias normais Lia teria ouvido tudo sem problemas, mas agora seus sentidos apurados estavam anestesiados, tão enfraquecidos quanto ela. Terminada a conversa sigilosa entre as duas, Dana saiu e a deixou a sós com a Arcana.

    — Onde está Barton? – Lia adiantou-se em perguntar. – Onde está meu bracelete?

    Sauly puxou uma das poltronas para perto da cama e se acomodou com total calma. Seu olhar, seu tom de voz, sua postura, tudo naquela mulher transmitia controle e confiança.

    — Barton está no refeitório, Dana já foi avisá-lo de que você acordou. E seu bracelete está com ele. – Ela inclinou-se e tomou o braço da Niffj coberto pelo lençol. – Ele sabe que é importante para você e não deixou mais ninguém o tocar.

    Liana ficou em silêncio, não sabia o que pensar sobre Sauly. Odiava Nayrú, o Arcano de sua dimensão natal, com todas a forças. Ele havia usado de sua influência para controlar os Áureos sob seu comando como cãezinhos em uma coleira. Mas e quanto a líder da terceira dimensão? Também era um tirana? Ela não sabia. Não sabia de nada que se referia a Shinê. Todo aquele mundo era um mistério para ela e para qualquer um do “lado de fora”.

    — Você se lembra do que aconteceu? – a Arcana quis saber.

    Lia fez que não com a cabeça.

    — Só alguns flashes.

    — Isso é um efeito colateral do estado de Vermelho Sangue em que você esteve. Algumas células do seu cérebro foram destruídas no processo. Como Niffj você se regenera rápido, mas sus memórias não.

    Aquele fato a deixou assustada. Teve medo de não conseguir se lembrar mais de quem era ou dos poucos momentos felizes que teve na vida. Mas estava tudo lá, os bons e os ruins. Apenas a noite da luta havia sido parcialmente apagada.

    — Eu me senti estranha lá – ela explicou. – Como se eu fosse alguém a mais.

    Sauly comprimiu os lábios antes de começar a falar:

    — Não sabemos muito sobre o ciclo infinito. Ninguém nunca teve a chance de analisar o fenômeno. Já ouviu a lenda dos cinco deuses? – Lia parou para buscar na memória os contos sobre a aurora do Véu. E respondeu que sim.

    As antigas escrituras falavam de uma entidade poderosa feita de pura luz e poder. Poder tamanho que quase rasgou o universo ao meio, se a primeira entidade não tivesse divido parte de sua energia em outras três entidades menores: uma dotada de pura força e resistência, outra capaz de domar os elementos da pureza, uma dotada da energia da mente e a última, escura e consistente. É dito nos escritos que essas energias pulsantes se espalharam pelo cosmo e deram origem ao Véu e este fez nascer os três Arcanos.

    — Alguns sábios Somas acreditam que a essência desses deuses ainda exista na aura – Sauly explicou. – Ou melhor, eles acreditam que a própria aura seja a essência desses deuses. E ela pode aflorar em estados de poder tão altos como o ciclo infinito.

    Lia fechou os olhos por um longo momento, estava ficando cansada de novo. O que Sauly está querendo dizer? Que eu quase enlouqueci por ter o pedaço de deus antigo na minha aura?, questionou-se.

    — Mas e você, Sauly? É uma Arcana, deve ser mais antiga e mais sábia do qualquer Soma. No que você acredita?

    A pergunta da Niffj não era um desafio, só queria algumas respostas mais concretas que ela tinha certeza de que uma entidade tão poderosa guardava. Sauly tomou ar para responder:

    — Eu acredito que...

    — Lia! – Barton entrou, empurrando a porta de uma vez. – Lia, finalmente acordou.

    Correu para abraçá-la, mas Sauly se pôs entre os dois.

    — Calma, Barton. Não vá machucá-la com sua pressa.

    — Tudo bem. Vou me controlar.

    Conseguiu conter a alegria e a vontade de abraçá-la e beijá-la até ficar sem fôlego e contentou-se apenas segurar sua mão.

    — Não sabe como tive medo. Me deu um baita susto.

    — Vou deixar que conversem um pouco – disse a Arcana, enquanto saia do quarto. – Dez minutos, Barton. Ela precisa descansar.

    — Tudo bem – ele gritou sem se virar para vê-la.

    Lia apertou a mão que segurava a sua e disse, com um sorriso faceiro:

    — Tudo bem nada. Onde está meu bracelete?

𝑨́𝒖𝒓𝒆𝒐𝒔 - 𝑺𝒆𝒈𝒖𝒏𝒅𝒂 𝑮𝒖𝒆𝒓𝒓𝒂Where stories live. Discover now