Capítulo 29

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Mesmo com a escuridão total conseguia ouvir o farfalhar de asas, indo e voltando. O barulho da liberdade que um dia tivera. Como se aquilo fosse um novo tipo de pesadelo, mostrando a leveza que o voo me dava, e que agora, mesmo com asas, nunca mais a sentiria.

Eu sabia onde estava antes mesmo de abrir os olhos. A leve brisa batendo em minha pele, o aroma de madeira com o cheiro das pedras da montanha entrando em minhas narinas.

Pisquei os olhos levemente, absorvendo a luz que viera depois de tanta escuridão. Meu corpo todo doía devido à explosão da magia. Ao sentir os músculos tensionados as lembranças invadiram minha mente, fazendo com que soltasse um pequeno gemido ao passar a mão pela cabeça.

Entregado, Rhysand havia entregado minha mãe e eu.

Era como se as torturas nunca acabassem. O inferno sempre piorava.

Me esforcei para sentar na cama dando de cara com o pequeno ser sentada na poltrona no pé da mesma.

Amren.

Os olhos prateados me estudavam calmamente. Nenhum ruído. Apenas aquela frieza mortal.

Lhe encarei de volta, não sentindo sequer um pequeno temor.

— Estava tentando adivinhar quando você acordaria.

— Seria melhor se eu não tivesse.

Ela estalou a língua e olhou para as unhas cor de sangue.

— O que está fazendo aqui? — Cuspi.

— Quem estivesse encarregado de lhe supervisionar teria que ser capaz de aguentar caso você decidisse se descontrolar novamente. — Nenhum receio entre as palavras.

— E essa pessoa é você?

— A única outra com poder suficiente para lhe contar não é capaz de levantar um dedo contra você, então... — As palavras morreram enquanto ela erguia rapidamente as sobrancelhas, em um puro gesto de deboche.

Rhysand. Era o único, além dela, com poder para me conter. Mas não o faria. Não o fez. Nem sequer tentou se defender contra mim.

Ótimo. Merecia cada infeliz golpe e sabia disso.

Os olhos de Amren brilharam, como se soubesse exatamente o que estava pensando. Grunhi em resposta. Ela abaixou os pés que estavam apoiados em minha cama e se inclinou para frente.

— Como sabia?

Ergui uma sobrancelha.

— Como sabia a respeito de Nestha?

Ah.

Por favor, havia pedido para Nestha.  E só ela pós fim aquela agonia inominável. Pelos deuses, como a queria aqui novamente, para me colocar por mais tempo naquela escuridão. Ou talvez para sempre.

Amren suspirou e proferiu:

— Três dias. Você ficou apagada por três dias. E Nestha se recusou a falar com qualquer um de nós, então desembuche.

Me recostei na cabeceira da cama.

— Nada de não ataque nunca mais meu Grão Senhor, ou você deve pagar pelo que fez, ou algo do tipo? — Mostrei os caninos enquanto perguntava.

Ela apoiou se ajeitou na cadeira. Em nenhum momento tirando os olhos do meu.

— Tenha cuidado com a escuridão, menina.

— Não fale comigo sobre escuridão.

Duzentos anos foi o que eu aguentei. Duzentos anos me segurando em uma única esperança, uma única luz para não sucumbir à loucura e me perder na escuridão devastadora. Sobrevivi o inferno para descobrir que a luz que me dava forças para sair de lá fora justamente quem me colocou ali.

Não deveria ter confiado nele.

Só a lembrança daquela declaração fazia meu sangue ferver. Fechei os olhos e tentei acalmar as batidas frenéticas do coração.

— Se você for por esse caminho, Rayla, não há como voltar.

Deixei o sangue se acalmar, e a magia voltar a adormecer. Respirei fundo. Uma, duas vezes. Abri os olhos então proferi:

— Antes das irmãs Archeron serem transformadas, o rei fizera alguns experimentos em mim com o caldeirão. A pior delas era quando aquele poder não afetava meu corpo, mas minha alma. As vezes eu podia senti-la, saindo do corpo, e então apagava por dias. As vezes conseguia ficar acordada durante um processo diferente, mas com o mesmo fim, e sentia como se tivesse se esvaindo, para onde não fazia ideia. — Suspirei para não deixar aquelas infelizes lembranças me atingir. — Então elas foram transformadas, e o rei nunca mais usou o caldeirão em mim. Mas o ouvia, rugindo aos quatro cantos de hybern que algo havia sido roubado.

Um músculo tensionado no maxilar foi tudo que tive como resposta de que ela estava ouvindo cada palavra. Continuei:

— Então quando conheci Nestha senti aquele poder de novo, e soube que ela o havia roubado.

A voz de Amren saiu mais fria que o normal, mostrando o quanto aquela descoberta a abalou.

— Está me dizendo — se inclinou para frente — que Nestha pode tirar nossas almas com um simples toque?

— Estou dizendo, bruxa, que ela pode destruí-las com um simples toque.

Podia jurar que seus olhos foram de cinzas para branco naquele momento. O bater dos dedos no braço da poltrona, portanto, era um único sinal de agitação que ela se permitiu demonstrar.

De fato, aquele poder era um tanto como perturbador. Mas o fato de ter caído nas mãos de Nestha, ou melhor, dela ter pego aquele poder me confortava. Havia visto e sentido o que aquilo poderia fazer e se havia alguém que podia controlar aquilo, essa pessoa certamente era Nestha Archeron.

Em um salto, Amren ficou em pé e se dirigiu para a porta, parando subitamente no meio do caminho.

— Ele se martiriza todos os dias desde quando aconteceu. Não houve um dia sequer que não se lembrasse de vocês. —  Eu não quis pensar naquilo, não quando eu não passei um dia sequer sem pensar nele, sem desejar até minha última molécula revê-lo. Rever o culpado por ter estado ali. — Temos sorte de tê-lo. Você tem. Ele a...

— Não termine essa frase. — Cortei.

Amren soltou um pequeno suspiro de desistência. Engraçado, desistir era a ultima coisa que achei que a pequena fêmea não fosse capaz.

E no momento em que ela alcançou a maçaneta, falei:

— Diga a Azriel que da próxima vez que ele estiver monitorando meu quarto, o derrubarei do céu.

Eles haviam colocado ervas tranquilizadoras em minha bebida e comida, se esperavam que não identificassem o cheiro não sabia, mas colocava cada maldito suprimento para dentro.

Aquela escuridão que eu tanto temia, havia se transformado em uma calmaria acolhedora.

Acordei sobressaltada no meio da madrugada, quase ao raiar do dia.

Outro pesadelo.

Dessa vez o rosto de Rhysand deformado. O sangue pingando ao chão. O olhar cansaço e destruído me atingia.

Eu havia causado aquilo.

Talvez tivesse me tornado o monstro que eu tanto odiava. Talvez os anos naquela masmorra tivessem o intuito não de me usar, mas me transformar naquela besta sem culpa ou remorso, porque sempre que lembrava do que havia feito com Rhysand, nenhum desses sentimentos vinham à tona.

Me aconcheguei novamente aos travesseiros e então reparei que o farfalhar de asas haviam cessado.  E não voltou no dia seguinte.

Ou no seguinte.

Ou no seguinte.

Corte de sombras e esperançaWhere stories live. Discover now