OITO: O Salvador

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Fronteira tríplice Chade-Nigéria-Camarões, África Ocidental. 12 de outubro de 2018


O barulho de motores cruzando a ponte que separava os três países não era tão corriqueiro quanto outrora. Grupos terroristas do radicalismo islâmico fizeram cidades pequenas virarem mausoléus.

Jacque tinha lido sobre o Boko Haram agindo nas redondezas, aproveitando-se do caos e de um discurso raso, porém religioso para adquirir material humano. Se a Operação Noel não tivesse envolvimento de nações inteiras, desconfiaria desse grupo terrorista.

O que fazia de Habret caso seu envolvimento fosse confirmado? Um general capaz de empurrar grupos extremistas para longe e vencê-los em seu próprio jogo? O mundo teria coragem em julgá-lo quando ele era a esperança de milhares sob o julgo nefasto desses radicais?

Aziz nada disse. O silêncio após os questionamentos era a certeza de que, se dependesse dos gigantes, Habret sairia impune. E isso a deixava com um gosto amargo, quase azedo, na boca.

Acompanhando o comboio, eles passaram por cidades controladas pelas inúmeras facções. Algumas estavam desertas, com as casas destruídas, lojas saqueadas, veículos e pneus em chamas. Marcas de batalhas ferozes eram visíveis nas paredes e, por um momento, imaginou as verdadeiras vítimas dessa guerra sem fim.

A dor no coração aumentou a cada quilômetro longe da capital.

Voltou a checar sua pistola e o abdômen. Trocou olhares suspeitos com o motorista que a encarava pelo retrovisor do carro, preferiu baixar os óculos escuros da cabeça para o rosto.

Ela engatilhou a arma e notou, de soslaio, Aziz mexendo silenciosamente em seu celular. Com quem ele se comunicava? Ela não conseguiu ver, desistindo quando o carro saiu da rodovia principal e adentrou uma vila volta em fumaça.

— O destino de vocês é aqui, podem descer — ordenou o motorista.

Jacqueline arqueou uma sobrancelha, mas obedeceu à ordem e desceu não muito contente. O ar ainda estava impregnado de fumaça e fuligem, embora a maior parte das chamas já tivessem sido apagadas, restando pequenos focos isolados.

Ela tossiu e esfregou os olhos, observando os soldados espalhados pela vila recém-capturada por Habret. Todos obedeciam à farda condecorada mais do que ao homem que a vestia. E ninguém parecia muito incomodado com a fumaça e o cheiro seco de queimado.

Nem mesmo Habret parecia incomodado, ele mantinha um charuto aceso entre os dedos. O general tragou o charuto importado.

— Aziz, mon ami! — Habret baforou antes de se aproximar e apertar Fabian em um abraço de urso. Jacque, em contrapartida, analisou seus soldados.

Alguns olhavam com desconfiança. Outros estranhavam a naturalidade de Habret com dois estrangeiros. Porém, o que mais chamou sua atenção era o seleto grupo localizado na entrada do vilarejo.

Seu líder a encarou com escárnio e comentou algo com os amigos, provocando gargalhadas altas. A mão direita de Jacque não saía da pistola, apesar de não intimidar ninguém na fronteira de um conflito.

— Habret! — Aziz abriu seu riso característico. — É sempre um prazer negociar com você. E pode me chamar de Fabian, meu amigo.

— Só se você me chamar de Idrissa. — Habret indicou para que caminhassem pelo vilarejo. — Agora, o que esse velho e bom amigo pode fazer por você?

Aziz olhou para Jacque de forma condescendente.

— Eu tenho assuntos secretos para tratar com Idrissa. Dê uma volta pelo local, faça alguma coisa. — Ele apontou para o vilarejo. — Você saberá quando a reunião acabar.

Jacque anuiu sem muitas palavras, contudo, por dentro ela entendeu as ordens por trás do pedido de privacidade. Se as primeiras impressões servissem, o vilarejo acabou de ser conquistado. As marcas eram visíveis em todas edificações e até no chão.

Aziz dizia, nas entrelinhas, para que ela investigasse a vila.

Sozinha, caminhou pelo local, visitando as casas mais próximas. Viu mais adinkras e outras marcas incrustadas nas paredes. No teto de uma delas, havia um símbolo Wiccano, um sino de vento mágico.

Habret não poupou a vila. As luzes do dia iluminavam os cômodos através das marcas de bala. Pelos respingos de sangue, as marcas de mão e o arranjo do quarto, era possível dizer que na hora do ataque haveria no mínimo duas pessoas, sendo uma delas, uma criança.

Não era possível que as potências quisessem um assassino de crianças no poder. Se recusava a acreditar.

Respirou profundamente para conter a raiva e voltou a analisar o ambiente. Tirando as inscrições, símbolos e alguns altares para os deuses locais, não havia grande indícios de magia. As pistas confirmavam a brutalidade corriqueira de um homem que a comunidade internacional chamava de salvador.

Nada diferente de zonas de guerra.

Cadê os corpos, no entanto?

O crepitar de chamas e o cheiro forte da fuligem invadiram suas narinas na última vistoria. Seguindo o velho ditado popular sobre fumaça e fogo, Jacque correu para fora e viu os mesmos soldados debochados jogando algo em uma imensa fogueira. Dessa vez, estavam sérios e compenetrados.

O líder deles, sargento pela insígnia do uniforme, a fitou quando ela se aproximou.

— Acho melhor passar um protetor solar mais forte — comentou em francês ao lançar mais uma tralha na fogueira. — Pode dar câncer de pele se ficar muito tempo no sol.

Os soldados riram.

— Não precisa se preocupar com isso. — Ignorou o comentário. Não antagonizaria seis homens fortemente armados. — O que estão queimando?

— Lixo. — Por um momento, Jacque viu o que parecia uma mão entre as imensas pilhas. Se sentiu nauseada. Não era possível, ou era? — O que não podemos reutilizar, queimamos. Terra arrasada.

— Achei que os terroristas também faziam isso. — Tentou mudar de assunto e desviar o olhar da fogueira. Volta e meia, porém, de canto de olho, encarava as chamas, esperando encontrar uma mão novamente ou qualquer coisa que confirmasse sua impressão. — É do manual do Estado Islâmico.

— Você se surpreenderia com o que podemos usar de utensílios domésticos.

Jacque não acreditava nem um pouco naquelas palavras.

— I.E.D? Um artefato explosivo improvisado?

— Algo melhor do que isso.

A confusão no rosto da agente da Interpol foi interrompida quando Aziz e Habret surgiram no horizonte. Ambos se reuniram diante da fogueira, maior e mais selvagem a cada item jogado.

— Aziz, eu vou lhe mostrar algo que vai abrir sua mente. — Habret, ainda com seu charuto, olhou seriamente para a fogueira. O ar se tornou mais macabro e cruel. Jacque não sabia se levava a mão à pistola, se atirava em alguém ou se puxava seu parceiro para longe.

Ela sentia as mudanças do éter, sentia as flutuações do ar. E, para piorar tudo, Habret mostraria a Aziz algo que podia mudar para sempre a história da humanidade. Ela sentia como nunca, no âmago de sua alma, nas entranhas do seu ser, o chamado da magia.

E estaria mentindo se dissesse que não temia as consequências de Fabian Aziz descobrir sobre ela.

E estaria mentindo se dissesse que não temia as consequências de Fabian Aziz descobrir sobre ela

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O Grande JogoWhere stories live. Discover now