ONZE: Rumores

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Base militar de Idrissa Habret, Lago Chade, Chade, África Ocidental. 12 de outubro de 2018.


Para olhos destreinados, era difícil entender a dinâmica na base temporária à beira do Lago Chade. Jacque, contudo, observou com atenção os detalhes do acampamento. Observou Fatimah usar linguagem de sinais para coordenar parte dos burocratas antes de sumir nos corredores fumacentos da cozinha e o profissionalismo do sargento debochado ao comandar as patrulhas e sentinelas.

Porém, ela esperou a reunião entre Aziz e Habret terminar para se esgueirar pela base. Deixando-o sozinho, deu uma volta pelo local, ocultando-se nas sombras das tendas e estruturas temporárias.

Queria saber os rumores da base, os humores dos soldados e o que cada um achava da causa de Habret. Tinha suas primeiras impressões, mas queria descobrir algo mais concreto.

Descobriu que um dos membros menos supersticiosos era uma antiga criança soldado, que afirmava que os verdadeiros demônios eram os seres humanos, os causadores da guerra sem sentido. Ousmane acreditava que as pessoas preferiam deixar estrangeiros controlarem a nação ao invés de se unirem.

Jacque também ouviu um soldado argumentar sobre a vida e a remuneração no exército. Em um país com uma baixa taxa de alfabetização, as forças armadas eram a melhor escolha para analfabetos como ele.

Sempre em movimento para não ser pega bisbilhotando, ela serpenteou a base sem se afastar demais da própria tenda. Aproximou-se da cozinha e do hospital de campanha improvisado, onde ouviu algo que lhe chamou a atenção: uma enfermeira falar alguma coisa sobre jinn, gênio na língua árabe.

Duas enfermeiras e um médico conversavam próximos à entrada da tenda sobre um dos feridos. Ela se aproximou silenciosamente e escutou a conversa.

— O que você acha que foi aquele ferimento? — A enfermeira não fez muita questão de ser discreta. — Acha que foi um ifrit?

— Queimaduras severas não costumam ter forma, mas a dele parece um adinkra. — O médico levou a mão ao queixo.

— Ainda acho que é sobrenatural. — A outra enfermeira, um pouco mais gorda que sua colega, concordou com a amiga. — Vocês não escutaram os rumores?

— Que rumores? — Indagou o médico.

— Existe um exército de crianças e adolescentes vagando pelo deserto, punindo os responsáveis por matá-las nos conflitos...

— Pensei que você era da ciência, Khadija.

— É sério, doutor. — Khadija estava convicta. Ao lado, a amiga balançava a cabeça em afirmação. — Pergunte a Raouda, ela vai te confirmar. Só de pensar nisso, já morro de medo.

— Eles não vão nos atacar. — O médico sorriu de canto de boca, duvidando das palavras da enfermeira. — Exercito nenhum é páreo para o General Habret.

— E se a divisão fantasma estiver a serviço dele?

A pergunta foi como o disparo de uma arma atravessando o alvo, incólume e precisa. O médico titubeou.

— Eu já vi de tudo. — A mulher voltou o olhar para o horizonte. — Mulheres parindo em bombardeios intensos, criança matando outra por um prato de comida, estupros coletivos... — Ela encarou a amiga e o seu superior. — E acredito, sim, nisso. O mundo ainda é muito misterioso.

— Ainda acredito em uma explicação racional...

Jacque parou de escutar quando um imenso blindado surgiu do nada. Obrigada a sair de onde estava, ela se embrenhou na base militar. Entrou por uma das portas da barraca onde funcionava uma cozinha e saiu por outra, perto de alguma coisa que parecia um banheiro comunitário, sujo e mal cheiroso.

O Grande JogoWhere stories live. Discover now