CARTA

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Abri a maçaneta da porta após ter tirado um cochilo de 2 horas nos puffs do andar de baixo. Meus colegas de curso estava arrumando as cadeiras em formato de um semi círculo para as apresentações da aula de hoje. Escolhi a música da pequena sereia para apresentar, precisávamos escolher uma música que fosse feita para teatro musical. 

Pesquisei no YouTube o instrumental da música e pedi para que minha colega Mari apertasse o botão de Enter quando eu desse o sinal do palco. Subi na elevação a frente de meus colegas, estava um pouco nervosa, a professora de hoje era bem exigente, após me apresentar recebi alguns apontamentos sobre a performance, como por exemplo "mãr" e não mar com a vogal aberta. Após assistir as apresentações de meus colegas, peguei minha mochila que tinha deixado jogada no chão e coloquei-a sobre os ombros para ir esperar o ônibus no ponto. Eu estava tão exausta de ontem que não pensei sobre o que aconteceu hoje mais cedo, mas estava me sentindo mais leve. 

No ônibus passando o feed do Instagram vi uma influenciadora que decidiu escrever uma carta para o corpo dela, sua conta também falava sobre autoestima, cuidado com si mesma, ás vezes era bom seguir pessoas que aparentemente sentiam ou já sentiram os mesmos sentimentos que eu em relação ao seu corpo e a si mesmo. E eu decidi tentar.

Tomei a ducha mais rápida da minha vida, coloquei meu pijama rosa de flores, e sentei-me na mesinha que ficava encostada na parede do meu quarto. O caderno estava com manchas de café que minha prima havia derrubado, mas deveria servir, com o lápis comecei a escrever palavra por palavra me despindo um pouco no papel.

 
De Karina para Karina.


Evito escrever essa carta, evito te olhar no espelho. É, não dá pra fugir do que está a nossa frente, mas posso dizer que dá perfeitamente para não enxergar quando decidimos não abrir os olhos, eu não consigo sequer ver o seu reflexo, e não é uma questão de escolha, eu não consigo enxergar o que eu deixei invisível. Eu só vejo erros, defeitos, julgamentos até eu não ver mais nada, passo avoada pelo espelho, e quando eu tento me ver no vidro eu não consigo reconhecer quem é essa que está na minha frente, eu fui me descuidando e eu nem vi como o meu corpo foi mudando ao longo do tempo. 

E cada vez mais a sensação de olhar para um corpo que eu não reconheço como meu virou constante. Isso não quer dizer que eu não me apeguei em você, eu não me apeguei no que eu vejo, mas sim no que eu toco, por isso tenho tanto medo de me desvencilhar de você, você é o único corpo que eu conheço, o único que está aqui. Você me acolheu, me deu conforto, me parece tão injusto dizer que eu odeio o meu corpo. As pessoas fizeram com que você fosse invisível para elas, e eu fiz com que você fosse invisível pra mim, mas você faz parte de quem eu sou hoje. Nesse espaço de tempo avoado sobre a minha imagem, a monotonia virou minha rotina. Eu não consigo sair do lugar, meus dias se tornaram um looping, ânimo era o oposto do que eu sinto, eu só queria que o tempo passa-se, se é dia eu espero que chegue a noite, se é noite eu espero que se torne dia, e eu não aproveito o momento presente, porque eu só quero que tudo passe. A comida entrou como minha grande válvula de escape, preenchendo esse vazio que tudo isso me causa, e de forma alguma é o momento do meu dia que eu respiro e consigo aproveitar melhor, pelo contrário eu como o mais rápido possível para conseguir comer mais e me sentir preenchida por dentro. Não que a minha aparência não importasse, mas eu não lembro dela quando eu só quero me sentir preenchida por alguma coisa. Não me sentir vazia por algum momento do dia. Por mais que eu sinta culpa, eu não consigo parar de comer, e cada vez mais eu sinto culpa e, mais eu quero comer, e mais vezes eu quero "lutar" contra isso no amanhã seguinte, quanto mais culpa eu sinto, mais eu como. Estou estagnada no mesmo lugar. Será que eu não gosto de mim por causa da imagem que as pessoas criaram de mim e eu não consigo me desprender dela?" A forma que eu aprendi a me expressar, faz com que as pessoas não me enxerguem hoje em dia, ou elas não fazem questão de enxergar? Posso dizer que autoconfiança não é algo que está presente na minha vida, eu não posso ser confiante no que eu não conheço. É difícil querer sair do único lugar que você conhece, mesmo que ele esteja todo no escuro. E fico no mesmo pensamento de não conseguir acreditar que alguém possa gostar de mim ou ter desejos, eu tenho um corpo com uma barriga, cheia de estrias, e braços que balançam quando se faz tchau. Mas será que é só isso que importa? Não preciso dizer que a comparação com outros corpos é algo que me afeta demais. Eu nunca me senti escolhida, nunca me sentia boa o suficiente, sempre alguém é melhor que eu, e muito mais bonita. Sempre tem uma melhor companhia do que eu para se estar. Eu nunca consegui me escolher. Por mais que eu não goste, ou tenha aprendido a não gostar foi com esse corpo gordo que eu me identifiquei a vida inteira. Quando se é gordo se aprende que você só vai começar a viver a sua vida a partir do momento que você emagrecer, porque a partir desse momento você se sentirá bem consigo mesmo e as pessoas começaram a te enxergar, mas eu não posso me sentir bem comigo mesma sendo gorda? Aprendendo a aceitar e amar esse corpo que eu tanto rejeito? Ser gordo é estar em uma corrida onde você já está atrasado e tem que chegar logo no final para quitar o preço, sinceramente sinto raiva de pensar que tenho que emagrecer para sentir que comecei a minha vida, ou que alguém possa gostar de mim, eu não posso ser amada com o corpo que tenho hoje? Meus olhos estavam lacrimejando quando terminei de escrever a carta. Só faltou escrever um pedido de desculpas ao final do papel.

📷: Pinterest

Um Clichê por entre as Curvas do espelhoHikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin