5 - Uma ressaca das bravas

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Abri meus olhos vagarosamente. Percebi que ali não era minha casa, e sim a de Fernando. Reconheci pelos adesivos colados no armário ao lado. Assim que tentei me levantar senti minha cabeça prestes a explodir em mil pedaços.

- Finalmente, bela adormecida! Achei que teria que beija-la haha – Fernando brincou me observando da porta do quarto. Eu olhei pela janela, mas não havia luz nenhuma

- Que horas são? – Perguntei com a voz ainda rouca

- Sete da noite. Você dormiu o dia todinho

- O QUE? Não, mas... espera! Como eu cheguei aqui? Eu não lembro de ter vindo pra sua casa – me sentei na beirada da cama com a mão na cabeça que latejava - Na verdade... eu não me lembro de nada...

- Toma. Bebe isso – me estendeu um copo de agua e um comprimido. Provavelmente um analgésico

- Minha cabeça dói tanto! – Resmunguei

- Você desmaiou quando te encontrei na festa. Tive que te trazer no colo feito uma criancinha e te dar banho

- Como assim me dar banho? Você me viu pelada Fernando? Seu tarado – atirei um travesseiro em sua direção. Logo depois reparei estar com um short doll e uma camisa que cabia duas de mim.

- Não né idiota – arremessou de volta o travesseiro – minha irmã que te viu pelada, bobinha

Ele ria da minha cara, mas seu tom de voz me confortava ao mesmo tempo. Sentou-se ao meu lado e afagou meus ombros.

- Eu fiquei muito mal?

- Se você considera vomitar no meu banheiro todo como mal pra caralho, então sim.

- Meu deus! Eu não lembro de nada disso. Por que me levou lá Fernando? – Eu resmunguei acertando seu braço com um leve soco.

-Eu não achei que você fosse beber tanto, Mica. Você chegou a dançar em cima da mesa sabia?

Eu escondi meu rosto no meio das pernas. Provavelmente tinha muita coisa que eu não fazia ideia de ter feito. Mas me recordo de flashes que não era capaz de distinguir. Era sábado, eu estava de ressaca, não podia voltar para casa por causa do meu pai, me senti angustiada por algum motivo desconhecido, e meu estomago roncava alto. Fernando disse que sua mãe prepararia a janta logo, e que enquanto isso eu fosse tomar um banho para melhorar minha cara de quem saiu de um quase coma.

Quando tirei minhas roupas notei o machucado em meu braço sem o curativo. Estava bem melhor. Conforme a agua quente escorria sobre minha pele pálida, eu me lembrava de sensações. Sensações de toque indesejado, no meu braço, na minha barriga, nos meus ombros e pernas. No espelho embaçado notei um pequeno vermelho em meu pescoço, e estremeci. O que eu fiz? Ou, o que alguém fez? Não saber os fatos reais da noite passada era desesperador. E eu sabia que essa dúvida do que aconteceu na festa matutaria em minha mente por muito mais tempo do que o desejado. Apoiei minhas mãos na pia e tentei respirar fundo. Pensamentos positivos eu dizia a mim mesma no reflexo do espelho.

Me vesti e fui tomada pelo cheiro maravilhoso ao abrir a porta, sinal de que o jantar estava servido. Era um pouco estranho para mim, comer em uma mesa como uma família, já que eu sempre fazia minhas refeições sozinha, as vezes até no meu quarto. A companhia, ainda mais deles, era deslumbrante, como se me preenchesse de alguma forma. Dona Suzana era adorável e humorada, o que seus filhos puxaram muito. Ela era uma dama formidável, rindo com uma taça de vinho de uma forme contagiante, nem sequer parecia já ter tido uma vida difícil ou problemas.

Fer havia me contado muitas histórias sobre sua família, e por mais que não gostasse de falar sobre seu pai, me lembro bem da vez em que ele apareceu em uma delas. Fernando costumava dizer que foi fruto de um romance de uma noite que deu errado, regado a álcool e sexo.

"Dylan estava em uma viagem de negócios, conheceu minha mãe no bar, ela estava com suas amigas quando o garçom levou um drink a pedido dele. Eles beberam e conversaram a noite toda, e bom, depois você sabe. Acontece que após daquela noite ele sumiu. Semanas depois minha mãe o encontrou no Orkut e descobriu que ele tinha voltado para Europa e ia se casar com uma "europeia perfeita", que provavelmente ele já namorava. Minha mãe foi uma aventura pra ele. Um branco nojento querendo experimentar uma preta antes de casar. Isso me deixa puto! Claro que minha mãe ficou mal, mas decidiu não contar nada. Ela nos criou sozinha, se eu tiver que chamar alguém de pai, vai ser ela. "

Eles eram muito unidos e fortes. Dona Suzana era uma guerreira, criar gêmeos sozinha não deve ter sido nada fácil. Sei que Fernando já passou por muitas injustiças na vida devido ao racismo, alguma piadinha em sua época de colégio levou a algumas surras, mas hoje nem parece o mesmo badboy justiceiro das histórias, tem uma paciência maestral. Eu também admirava demais Ágata, algumas vezes a vi cabisbaixa e descobri que o motivo eram comentários sobre seu vitiligo na internet. Embora isso a abalasse, o que é compreensível, não era capaz de tirar sua energia revigorante e contagiosa, poucos minutos depois estava esplêndida e inalcançável.

- O que achou do molho Mica? Testei uma receita nova – dona Suzana perguntou-me percebendo meu prato quase vazio

- tá incrível dona Suh– e estava mesmo. Estava quase lambendo o restinho de molho no fundo do prato – tem coentro?

- Um pouco, deu pra notar? – Pareceu animada por eu ter notado

- Sim – sorri depois de um bom gole de refri – ãhm, fer? Posso passar mais essa noite aqui? – Falei baixo me inclinando sobre seu ombro

- Não sei porque pergunta, você sabe que pode – sorriu de forma reconfortante, e eu retribui.

Dormi como uma princesa e resolvi olhar meu celular quando acordei. Fiquei espantada quando vi vídeos meus dançando na festa assim como Fernando citou. Fiquei apavorada de tanta vergonha, mas por algum milagre não havia nada demais nos comentários. Aparentemente eu era só alguém que curtiu muito a festa, o que estava sendo ótimo pra Adam, já que as hashtags eram "#aMelhorFestaDoAno". Fernando riu do meu desespero como sempre, mas me confortou lembrando que não havia motivos para ficar mal.

Passamos o domingo todo maratonando filmes na netflix com pipoca e brigadeiro. Jogamos banco imobiliário, fofocamos, Fernando falou sobre a faculdade, Ágata explicou um novo projeto de moda que estava pensando. Eu preferi só ouvir, mas em algum momento a história da "garota se afogando na piscina" acabou divertindo eles.

Ter companhia por tanto tempo me fazia viajar além das memórias, quando eu tinha uma família de verdade. Eu era uma criancinha ainda, mas mal sabia que jantar a mesa todo dia era algo que sentiria tanta falta. Sempre que sou levada a uma lembrança assim fico presa por muito tempo revivendo tudo aquilo. É intenso, sentir as mesmas sensações, mas de um jeito um pouco mais triste. Cada vez que me recordava de uma nova memória, outras três me esperavam, e isso se repetia cada vez mais intensamente. Saí do transe quando vi todos rirem olhando para mim, aparentemente eu parecia ter dormido de olhos abertos.

Um pouco antes de escurecer eu me despedi e agradeci. Voltei de Uber para casa e quando cheguei, notei que era a única ali. Respirei aliviada. Antes de dormir agradeci mentalmente pelo dia incrível e por me sentir parte de uma família.

Lembranças Perdidas De Uma Garota QualquerWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu