20 - Morte e champanhe

205 16 0
                                    

Era véspera de natal. Nunca pensei que esse dia chegaria tão cedo. Depois de várias semanas incríveis ao lado de Laura, assistindo aos jogos que agora Adam podia jogar, conversando com Fernando e trabalhando com Mary e Helena, eu não pensei muito sobre 24 de dezembro.

Agora com as férias, a neve caia aos poucos lá fora deixando as ruas esbranquiçadas. Os dias passaram rápido, e eu nem havia me dado conta de que esse maldito dia chegara. Queria não ter acordado e pensado em tudo. Queria ter esquecido realmente. Mas não há como.

Fiquei o dia todo na cama pensando naquele dia e tentando não chorar, mas eu sempre me lembrava da arma em minha cabeça e como minha mãe havia me defendido sem pensar duas vezes. Eu queria ser tão corajosa quanto ela para enfrentar essa dor que espremia meu peito. Me lembrava dos gritos, e do som alto do disparo da arma bem ao meu lado, todo aquele sangue no chão enquanto a polícia entrava e não encontrava ninguém além da minha mãe morrendo em meus braços.

Um pouco antes das sete da noite eu abri o armário, peguei uma garrafa de champanhe e sai andando pelas ruas com o vento gélido em meu rosto. Caminhei mais de meia hora até chegar no cemitério. Passei por todas aquelas lapides pensando na história de cada um que ali jazia, será que muitos amaram nessa vida? Será que morreram por amor como minha mãe? Será que viveram uma boa vida, repleta de sonhos? Cada lapide era diferente, entre algumas de pedra e outras de mármore, encontrei facilmente o tumulo de minha mãe, já havia feito aquele caminho tantas vezes.

Laura havia me convidado para passar a véspera de natal em sua casa, mas eu não conseguia ir. Não conseguia pensar em outra coisa que não fosse minha mãe. Não era capaz de me sentir bem, não naquele dia.

Sentada ao lado de sua lapide eu estourei o champanhe e bebi da própria garrafa fazendo um brinde a ela

- À você, mamãe! Feliz véspera de natal. – E tomei um gole.

O que será que Grace pensaria de ver a filha assim? Chorando em seu tumulo como se fosse o mesmo dia em que morreu. Eu chorava freneticamente agora, implorando para que ela ainda estivesse comigo. A dor em meu peito era tanta que parecia que iria explodir a qualquer momento. Tudo ardia e queimava em mim, e eu só pensava em me juntar a ela o mais rápido possível, por que a saudade era tanta que corroía meu coração.

- Eu não suporto mais ficar sozinha, mãe. Não suporto – falava em meio aos soluços.

Ouvi alguns passos enquanto eu limpava rapidamente minhas lagrimas

- Laura achou mesmo que estaria aqui - Adam se sentou no chão de frente para mim pegando o champanhe da minha mão e dando um gole também - ao que estamos brindando?

- A minha mãe –falei baixo tentando não voltar a soluçar. Seus olhos encontraram os meus depois de tanto tempo e eu não consegui manter a pose, meus olhos lacrimejaram na mesma hora e eu desatei a chorar novamente. As lagrimas queimavam meu rosto como brasa, e a garganta doía com tudo que estava entalado.

Adam se aproximou de mim passando seus braços a minha volta e afagando meus ombros. Eu o sentia tremer um pouco, fosse de nervosismo ou de frio, eu não podia dizer. Ele dizia que estava tudo bem enquanto eu negava com a cabeça.

- Não ta tudo bem. Ela morreu – minha voz estava embargada pelo choro que escorria em meu rosto. – Ela ta morta!

- Eu sei, eu sei. – E seu abraço se tornava mais forte. Suas mãos estavam frias assim como nossos rostos, pelo ar cortante, eu queria sumir dali.

Eu respirei fundo. Depois de um tempo eu havia conseguido cessar as lagrimas e me recompor, mas ainda estava em seu abraço. Uma cena caótica de dois adolescentes abraçados em silencio sentados na grama úmida ao lado de uma lapide. Quando me afastei vi que também havia resquícios de lagrimas em seus olhos.

- Eu vi tudo. Quando ela morreu – contei – tudo por causa do meu pai.

- Como assim? – Ele perguntou calmamente, tentando parecer gentil

- Se ele tivesse usado certo o dinheiro do empréstimo para o negócio de construção, tudo teria dado certo. Mas ele caiu na tentação quando conheceu um cara, e ele gastou tudo em droga e em apostas nos jogos, ele se endividou. Isac nunca teria ido cobrar ele a um ano atrás. Se nós duas não tivéssemos voltado cedo, se eu tivesse ficado escondida, Isac nunca teria colocado a arma na minha cabeça e ela não teria morrido pra me defender

- Você não tem culpa nenhuma nisso, Mica

- Eu entendo que não, mas por que eu me sinto culpada então? – Eu sentia o choro vindo de novo. Falar daquele dia era doloroso, e eu nunca havia dito para ninguém o que aconteceu, o que doía ainda mais. Mas parecia desentalar minha garganta que sufocava com o choro

- Por que você a amava – disse colocando as mãos em meus ombros

E ele estava certo. Eu sentia culpa por ela ter morrido por que eu a amava demais. E eu estava lá, podia ter feito alguma coisa para salvar a pessoa que eu amava, mas não fui capaz. Não fui capaz de salva-la, assim como não pude fazer nada enquanto ela estava em meus braços com uma bala no peito.

- Talvez ter ficado escondida não mudaria a morte dela. Quando as coisas têm que acontecer elas acontecem – Adam falava calmamente cada palavra

- E por que uma coisa assim teria que acontecer?

- Eu não sei

Ficamos um bom tempo em silencio, apenas olhando do tumulo para o céu, deixando escorrer uma lagrima e outra, ouvindo nossas respirações e sentindo a brisa gelada. Eu não sabia porquê Adam estava ali. Talvez Laura quem tivesse pedido para estar lá, ou talvez ele só estava curioso do por que eu havia ido ao cemitério. Contar para ele o que aconteceu parecia ser mais difícil do que foi. Não deixou de ser doloroso, mas foi mais simples do que seria se eu escolhesse outra pessoa pra contar. De alguma forma eu o sentia ali, pronto para ouvir qualquer coisa.

- Hoje eu recebi uma notícia do banco, dizendo que nossa dívida foi paga.

- É?

- Sim. – Aguardei algum tempo até finalmente perguntar – você teve alguma coisa a ver com isso?

Ele ficou em silencio por alguns segundos, tentando encontrar o jeito certo de dizer

- Eu vi o aviso aquele dia na sua casa enquanto você tomava banho. Foi aí que eu entendi por que você precisava tanto da grana das aulas. Então eu fui até o banco, aproveitei e vi sua dívida. Meu pai nem vai sentir falta do dinheiro

- Você não precisava ter feito isso, Adam

- Mas eu quis. Eu finalmente podia fazer algo por você que fosse ajudar, então eu fiz. – Ele parecia estar sendo sincero em cada palavra que dizia. Havia um certo brilho em seus olhos enquanto falava

- Obrigada – agradeci timidamente – bom, acho melhor sairmos daqui. – Me levantei limpando a grama úmida da minha calça

- Eu te deixo na Laura – disse me acompanhando

Fomos em silencio até a casa de Laura, onde passaríamos a véspera e o natal juntas. Agradeci a Adam por tudo, e entrei. A senhora Salles preparou uma ceia incrível, que a meia noite atacamos famintas. Laura percebeu que eu havia chorado, mas ela sabia o motivo e não fez nenhuma pergunta, provavelmente querendo evitar que eu tornasse a ficar triste.

Passamos a noite ouvindo histórias de sua mãe, até pegarmos no sono na sala mesmo. Acordamos no sofá, com mal jeito nas costas, e passamos o dia todo juntas, conversando e comemorando o feriado. Trocamos presentes e devoramos um Sundae de morango. Dei a Laura uma blusinha vermelha que encontrei numa loja da renner, Laura me deu um disco do nirvana e um cd do ed sheerean, que eu particularmente amei.

O dia passou rápido e eu me senti muito acolhidaem meio a tanta dor daquele maldito dia, que eu achava que seria tão pior doque realmente foi, graças a pessoas que a um tempo atrás eu nunca imaginei queestariam lá. 

Lembranças Perdidas De Uma Garota QualquerWhere stories live. Discover now