10 - Brincadeira de criança

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Provavelmente Mary contou a Helena o que havia acontecido porque ela me dispensou mais cedo com um olhar gentil, mas sem tocar no assunto. Devo ter ficado um bom tempo no chuveiro tentando tirar aquela sensação de impotência e vergonha como se fosse sujeira, mas não sairia facilmente. Fiquei trancada no quarto comendo um belo pedaço de bolo de chocolate que peguei antes de sair do trabalho, me afogando em algumas lagrimas insistentes enquanto rabiscava algumas coisas no diário.

Eu ainda pensava sobre o vídeo, mesmo que tentando não ligar como Mary havia dito. A questão e que isso abala demais uma mulher. Ter algo sem você nem saber que existia, sendo mostrado para qualquer pessoa que tenha internet, é desumano. Mesmo que as pessoas fossem esquecer depois de um tempo, a questão era mais sobre estar ali sem eu saber, ter sido gravado já foi ruim demais. Eu queria não ter ido aquela festa, mas parando para pensar, poderia acontecer com outra garota, ou em qualquer outro momento. O grande problema é que por nascer mulher já estamos expostas a esse tipo de violação. O mundo não deveria rodar sobre regras feitas por homens, mas é assim que funciona, se alguém denuncia um caso assim, nada acontece de verdade.

Eu havia me forçado a desligar o celular, mas tinha uma tentação de olhar cada vez mais o que estavam dizendo mesmo que fosse me torturar fazendo isso, de certa forma parecia um castigo. Por mais que a escolha de ter feito aquele vídeo não tivesse sido minha e que eu não estivesse em condições de impedir quem quer que fosse, a culpa estava me consumindo. Afinal, era o meu corpo ali, para qualquer um que tivesse internet, e nada que eu pudesse fazer apagaria aquilo, até porque milhares já tinham visto.

Depois de tudo o que aconteceu, eu nunca dei atenção para minha aparência, e eu odiava notar tudo que havia em mim. Comecei a ter repulsa dos machucados, dos ossos tão aparentes pelos quilos que eu perdia. E agora, com ele exposto de uma forma tão nojenta e....no mínimo traumática, só piorava. Eu queria saber como outras meninas que passaram por isso aguentaram.

Quando cai na cama aquelas imagens ficaram se repetindo na minha mente até eu pegar no sono, e por mais doloroso que fosse, já era uma pequena vitória não ter outra crise como na lanchonete.

No dia seguinte acordei quase as duas da tarde. Resolvi faltar a aula para evitar os olhares que eu sabia que receberia. Eu não estava pronta para surtar de novo com as pessoas me olhando e rindo alto tendo certeza do motivo, de que eu era o motivo, de que aquele vídeo idiota de um babaca se aproveitando de mim inconsciente era o motivo. Só de pensar eu sentia o choro preso na garganta, mas não me permiti chorar para não desencadear nada pior.

- Boa tarde Helena - passei dando um rápido abraço enquanto ela estava no caixa retirando os pagamentos maiores.

- boa tarde, Mica. Só vou colocar mais moedas para o troco e já deixo o caixa livre pra você - respondeu carinhosamente com seu bom humor de sempre.

- Fernando já chegou? - Perguntei colocando meu avental e começando a descer algumas cadeiras que estavam sobre as mesas de centro.

- Não, acho que a Mary que vai vir nesse horário hoje, ela pediu pra trocar porque tinha um compromisso depois. - Helena fechou o caixa e eu apenas assenti, com as notas em um envelope ela me deixou só e caminhou até seu escritório

Atendi um casal e um senhor um pouco mal-humorado nos 40minutos que se seguiram, até que Mary chegou me cumprimentando e colocando seu avental às pressas

- Perdi a hora droga - ela estava nervosa, mas ainda assim sorriu e depois de um tempo em silencio voltou a falar -mas, e ái? Você está melhor?

- É. não fui pra escola hoje então acho que to bem né. Ontem à noite quase me dei um tapa pra não voltar a chorar kkkkk

- Isso aí garota, assim que se faz - deu uma tapinha de empolgação na minha bunda - você vai ficar bem, Mica, confia em mim

- Eu confio em você. Em mim que não confio

- e tem que para com isso

Mary tinha essa mania de mandar as pessoas ficarem bem, por mais que até ela soubesse que não era assim que funcionava, era seu jeito de se preocupar com as pessoas. Ela não gosta de ver ninguém que ela ama mal.

- Ei Mary? Por que trocou de turno com o Fernando hoje? - Perguntei curiosa me lembrando do que Helena disse mais cedo.

- ah, sabe como é.... tenho um encontro hoje - me olhou de canto mordendo os lábios

- Olha só, você é rápida kkkk, é o Cris?

- Ah ele era muito chato, só falava de si mesmo, você sabe que não suporto isso

- Ah se sei – eu ri

Já era quase fim do expediente quando meu telefone vibrou. Era Adam perguntando se eu iria hoje. Sinceramente eu havia me esquecido disso, e lembrar me desanimou um pouco. Então voltei a pensar no vídeo. Será que ele viu? Será que ele sabe quem gravou já que estava na festa? Será que ele era o @ que postou? Duvidava muito desse último, mas a paranoia era inevitável.

Quando deu minha hora de ir, me despedi de Helena e Mary que sairia logo mais para mais um de seus encontros malucos. Fui andando até em casa, tomei um banho, peguei meus livros e arrumei minha mochila e fui novamente caminhando até a casa do Adam.

Bati na porta como sempre, mas dessa vez quem atendeu foi Cloe

- Mica! - Falou animada pulando em mim em um abraço forte. - Mica, brinca comigo hoje? Meu irmão acabou de entrar no banho

- Pode ser, a gente brinca até ele terminar. – Cloe já estava me puxando para seu quarto como se cada segundo contasse. - O que quer fazer?

- To terminando meu chá de boneca, senta com a gente

Cloe me serviu chá de mentirinha e começamos a inventar uma conversa chique inglesa de princesas. Quando o chá acabou ela fez um penteado de "realeza" como chamou, em mim. Com um coque no alto, uma tranca em cada mecha da frente e um rabo de cavalo fino na nuca. Depois foi minha vez, tentei fazer uma trança embutida como minha mãe costumava fazer comigo quando eu era pequena. Quando estava amarrando a ponta da trança Adam apareceu chamando por Cloe

- Cloe, você viu minha meia branca?... Ah, já chegou?

-É - respondi na mesma hora em que sua irmã dizia que não sabia de meia nenhuma "pergunta pra Ana, Adam, eu to brincando não ta vendo? "

- É, mas agora a brincadeira acabou. Vamos acabar logo com isso vai, Mica.

Ele parecia bravo, sem paciência. Não demonstrava nada além disso, mas eu não arriscaria perguntar.

Peguei meu livro de literatura e pedi para ele ler o texto da página 310. Enquanto isso eu rabiscava algumas lembranças da última crise no meu diário. Ouvi Adam reclamar que não entendia nada pelo menos 5 vezes, e não parava quieto no lugar.

Peguei o livro, li em voz alta explicando a cada pequena frase, o que parece não ter ajudado tanto já que ele continuava a reclamar.

- Adam, não tem como eu te ajudar assim poxa!

- Você que é a professora, faz sua parte! - Respondeu

- Eu já to FAZENDO! Não ta vendo? Você que não para de falar bosta - aparentemente perdi a paciência assim como ele

- porque é uma bosta mesmo, não dá pra entender nada, não aguento mais!

- Não faz nem 15 minutos que a gente começou, para de graça

- Para você de graça, que saco

- Isso não vai dar certo. Chega por hoje - disse jogando o livro rapidamente na minha bolsa e jogando por cima dos ombros

- Como assim chega por hoje? - Adam se exaltou levantando rapidamente da cadeira

- Que chega. Você não está afim de estudar hoje e eu não posso fazer nada quanto a isso. Então chega, vai fazer suas merdas, ok? Tchau. - Sai a passos largos e bati a porta antes que ele falasse mais alguma coisa. 

Lembranças Perdidas De Uma Garota QualquerWhere stories live. Discover now