Capítulo 4

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Acordei com o barulho dos abutres.

Do buraco onde me encontrava, podia vê-los rodeando o corpo na dança macabra que precedia seu banquete. Meu estômago revirou, não sabia se pela visão dos pássaros agourentos ou pelo assassinato que cometera. Tentei me lembrar de onde conhecia a palavra assassinato. Não lembrava claramente da aula que tratava do verbete. Talvez simplesmente soubesse o que era sem que a tela precisasse me ensinar. Todo o meu corpo estava arrepiado.

O corpo não devia se decompor tão rápido a ponto de atrair esses animais, certo? Nunca fora bom em fisiologia.

— Eu sou Ninguém — sussurrei para o tempo aquela frase que por tantas vezes me manteve acordado. Tornou-se quase um mantra. O mantra do meu disfarce. O disfarce da minha loucura.

"Saber ser louco me torna são?"

Eu estava com fome, estava com frio e, percebi que tinha me urinado, embora sequer lembrasse quando. Talvez no susto de ser atacado? O aroma acre da urina estava misturado com o monte de folhas mortas que sujavam minhas vestimentas. Aquelas roupas acinzentadas e quadradas me lembravam do cubo, o que seria um conforto, se elas não estivessem imundas.

Fiquei ali, não me movi, ao contrário, repassei mentalmente a mensagem da tela:

"Além desta porta, dentro de um terreno de tamanho indeterminado, há um número indefinido de homo sapiens. Seu objetivo é ser o único sobrevivente. Como prêmio por sua graduação, você receberá um nome e um lugar em nossa Meritocracia. Não há regras, além da sobrevivência. Seja competente."

Ser competente, sobreviver.

O cadáver que estava logo ali havia entendido o objetivo daquele estágio muito mais rápido que eu. Estremeci. Como compreender algo dessa magnitude quando o seu único comparativo era a vida dentro de um cubo? 

Aquilo não era... errado? Sentia em seu íntimo que sim. Naquele mesmo que me perguntava o que havia além das quatro paredes de sua morada. Naquele mesmo que me levava a questionar quem eu era, o que eu era. Aquele mesmo que me repetia "Eu sou Ninguém" até me convencer disso.

Mas a razão me imbuía de outras aspirações. Como sempre fora. Ela me incitava a querer mesmo acordar com o ruído da tela, mas podia ser outro, nunca fora exigente. Podia ser o ruído do gás entrando, que significaria que eu passaria um período indeterminado desacordado. Eu sabia, no entanto, que, quando acordasse, teria uma cicatriz ou um lembrete de que algo acontecera enquanto eu dormia – os olhos que não abrem, a ausência de uma das unhas, o cabelo raspado ou uma dor lancinante nas têmporas. Sabia que, algumas vezes, quando acordasse, teria um dispositivo que me faria companhia por alguns dias, mas que eu não deveria me apegar à mudança.

Os dispositivos variavam, por vezes eram máquinas de exercícios físico, outras eram simuladores diversos, neles fizera cirurgias, atirara, pilotara veículos mecânicos. Eram seus dias preferidos, os que aparentava que não estava no cubo, apesar de saber estar. Desejara estar em outro lugar. Sua tolice era espantosa... Se soubesse como seria, jamais teria cometido a injúria do desejo.

Agora tudo era diferente. Tudo se resumia a matar ou morrer.

- Matar... ou morrer?

Suspendi a respiração por um instante, extasiado com minha descoberta. Pela primeira vez em meus sete mil, seiscentos e setenta e um dias de Ninguém, eu tinha uma escolha.

Desconhecidos #EFCWOnde histórias criam vida. Descubra agora