Capítulo 18 - ENNE

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Enne


"Pela Tela! O que eu fiz?"

Essa era a pergunta que, pela milésima vez nas últimas horas, martelava minha cabeça, fazendo com que vez ou outra desse meia volta e andasse alguns metros, para logo desistir e subir a montanha de novo.

Léo estava com um cansaço atípico quando o deixei, sua expiração em assobios e a temperatura elevada indicava broncoespasmo viral. O Nano X que havia deixado em sua bolsa seria o suficiente para recuperar os pulmões dele, os nanites abririam os brônquios e após finalizarem seu trabalho, o que não fosse absorvido pela corrente sanguínea, seria desprezado na urina.

O medo que ele não soubesse como usar me assombrava. E se piorasse? E se não soubesse a utilidade do Nano X, ou onde aplicar? Já sabíamos que nossos conhecimentos eram diferentes. Mas isso era o básico de técnica médica, certo? Ele tinha que saber. Só um Ninguém sem mérito não saberia disso. Se um Ninguém não soubesse algo assim, então o que seria?

Um Ninguém sem competência, certamente. Descartável. E já estaria morto. Não, ele saberia...

Eu me convencia disso a todo instante. Desisti de voltar e continuei subindo a montanha, aproveitando para manter a minha vantagem enquanto podia.

Meu coração estava acelerado, a pressão sanguínea alterada, e meus ouvidos zuniam. Tropecei de novo, desta vez em um buraco, tendo que me agarrar com as mãos na área íngreme para não cair. Como Leo me afetara tanto?

Tudo tinha começado com aquele trio de fêmeas. Se elas não estivessem me caçando, talvez nunca tivesse ficado sem água, nunca teria sido tão descuidada ao fugir e deixar os rastros para que ele me achasse, e então não teria recebido uma gentileza gratuita, quando devia estar morta, se não de sede, pelas mãos dele.

Lembrei do quanto fiquei surpresa quando ele simplesmente se virou e partiu. Foi só ao ouvir o som do farfalhar de folhas se distanciado, que abri os olhos e vi sua silhueta agachada se afastando na escuridão. Alguém grande, mas não o maior homo sapiens que vira até então. Certamente não o maior que matara. Esta surpresa, contudo, foi diminuída pelo vasilhame cheio de água que ele deixara para trás, bem quando a dor de cabeça assomava, a fraqueza a entorpecia, enquanto pensava se pela manhã iria levantar ou desistir. 

O porquê daquilo ficou me atormentando pela hora seguinte. Sem conseguir dormir, decidi procurá-lo. Quem era esse Ninguém que não fazia a única e, aparentemente, última tarefa dada pela Tela? Eu podia ter constatado que ele não tinha mérito, ou competência, mas não era isso. Ele tinha armas de fogo, tinha água, era ágil e a rastreara no escuro. Todos indícios de um homo sapiens que sabia o que fazer. No entanto, depois de matar outros sete sem hesitar, aquilo me parecia... inconcebível. 

Estava decidida a encontrá-lo e matá-lo. Um ser fraco não merecia ser Alguém.

Então o vi tremendo, buscando abrigo, suas roupas encharcadas estavam grudadas em seu corpo magro, mas musculoso. Observei enquanto Léo, trôpego, não se deixava levar pela enormidade daquela tempestade. O vi usando de técnica e inteligência para montar uma estrutura para a fogueira, algo que nenhum de nós havia feito.

Foi estranho sentir empatia. E pensei que talvez tivesse sido isso que sentira ao meu ver encolhida e desidratada.

Senti uma leve tontura e parei para comer, as costas apoiadas em uma elevação que me daria cobertura. Ativei meus trajes para me mesclar à paisagem e retirei um pacote de maças desidratadas da mochila. Precisava aproveitar a luz do sol para recarregar as baterias da roupa para poder me camuflar durante a noite. Tinha usado por muito tempo a camuflagem desde cedo, para ter certeza que ele não me acharia, o que tinha sido arriscado. Um risco calculado, ainda que um risco.

Respirei fundo, os olhos fechados, mastigando a fruta de maneira automática, embora tivesse uma consistência tão estranha que não parecesse natural. O que importava o que eu comesse? Só precisava comer para ter calorias e vitaminas o suficiente para me manter razoavelmente saudável. Tentei focar meus pensamentos em como o processo de desidratação de alimentos impactava na perda de vitaminas, calculando assim o quanto eu deveria ingerir para compensar a perda acarretada pelo processamento, principalmente aquelas hidrossolúveis...

— Ahhhhh!!! — queria gritar, mas tudo o que eu fiz foi expressar a minha insatisfação o mais baixo que consegui, só para não engasgar com ela.

A quem eu estava tentando enganar? Pensar em vitaminas hidrossolúveis jamais seria capaz de apagar a visão da mão do Leo estendida para enxugar aquela lágrima sem mérito que insistiu em escapar dos meus olhos. 

Era estranho, mas me sentia embargada só com a memória.

Léo estava bem ali, a meio braço de distância. Os olhos marrons delineados naqueles cílios longos e escuros, os olhos mais gentis e cheios de vida do mundo, eu sabia. Eles estavam cheios também de surpresa e... sentimento e... angústia e.... saberes e... 

  — Ahhhhh!!! — queria gritar, mas tudo que fiz foi abafar minha voz no meu antebraço.

Quando o ouvi me chamando de Enne... Respirei fundo e suspendi a expiração para tentar guardar um pouco daquela sensação. Eu fiquei triste e feliz, contraditoriamente. Ele tinha me dado um nome, afinal.

"Aquele homo sapiens despropositado".

Os ruídos da manhã se estendendo por toda a montanha. Ele devia acordar em breve...  abri os olhos novamente, só então prestando atenção na extensão diante de mim. Nossa! Estava alto. 

Procurei Léo, mas ainda não vi nenhuma movimentação à noroeste. Já sentia falta até de seu silêncio, de seu sorriso de canto de boca. Dizia bobagens só para tentar quebrar aquela aparência distante e cuidadosa que ele tinha, fazia perguntas e mais perguntas, todas aquelas que eu sempre tinha guardado para mim, só para vê-lo franzir a testa ou arregalar os olhos. Seu rosto bem marcado, com pelos faciais que cresciam, mas ainda não enchiam seu rosto, mais de uma cabeça inteira mais alta que eu. Ele provavelmente saberia dizer quantos centímetros. Era essa a imagem que não saía da minha mente, mesmo com um mundo inteiro adiante. Vastidão, como Léo chamava, era impressionante, mas como comparar o impacto daquilo, quando tinha um outro ser incrível que estava apenas um pouco distante. Um ser que merecia ser Alguém muito mais do que ela. Ele inclusive achara seu colar. Era apropriado que fosse assim. Ela já deveria estar morta mesmo.

Não tinha ideia de quanto percorrera, mas olhando o caminho que tinha a percorrer adiante, estimava que já estava na metade da distância até o topo. 

Suspirei pegando novamente a minha mochila imensa, para seguir o caminho adiante. Sairia do caminho dele. Léo não teria coragem de matá-la e isso era somente mais um item da longa lista do porque ele seria mais competente do que ela, melhor do que ela.

E faria o possível para garantir que isso acontecesse.

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Queridos leitores,

Desculpem pelo atraso deste capítulo. Tive que reescrevê-lo três vezes para deixar do jeito que queria. Primeiro porque ia continuar com a visão de Ninguém, mas depois de escrever e reescrever, percebi que realmente o que estava faltando era a Enne. <3

Espero que gostem de tê-la com um capítulo inteirinho para si.

Obrigada mais uma vez por lerem, pelos votos e os comentários incríveis! <3

Um BeijO!

Danny Ueda

Desconhecidos #EFCWWhere stories live. Discover now