Capítulo 19 - Ninguém

367 56 24
                                    


Ninguém


Quando a única realidade que conheci foi estar sozinho, como eu poderia entender o que é ser só? Quando não vi, ou não lembrava ter visto, um único homo sapiens na vida, quando tudo o que conheci foi um cubo, como poderia saber o que é solidão?

Foi estranho descobrir.

Havia um oco latejante em meu coração, o que, apesar de esquisito, muito, notei ser possível. Um vazio tão grande que me fazia sentir um frio que vinha do centro e se estendia aos membros inferiores e superiores. Um frio que nada tinha a ver com a temperatura ambiente.

Enne estava errada sobre mim, talvez ela precisasse me dar outro nome. Leopardo não era apropriado, eu detestava a solidão. Ela era uma sombra que me acompanhava, enquanto me aproximava do cume daquele lado da montanha.

Se eu encontrasse Enne o que faria?

Afastei esse pensamento pela décima terceira vez da minha mente, olhando a paisagem atrás de mim. Descobri que a melhor forma de tirar Enne da minha cabeça era vislumbrar a Vastidão.

Toda aquela área imensa se estendia gloriosa, imperturbada a despeito daquele sem número de ninguéns. O cheiro ali naquela altitude era diferente. Mais... puro de alguma forma, o ar gelado expandia os meus pulmões e ardia os olhos, e a vista... respirei fundo... a vista era tão magnífica que me convenci que a reviravolta em meu estômago nada tinha a ver com a fêmea que me deixara para trás.

O sol estava quase se pondo, o anoitecer banhava toda aquela extensão de cores que jamais sonhara presenciar. 

Foi ali em cima que entendi as limitações de visão de um homo sapiens, quando queria ver muito além do que os meus olhos permitiam. Não, eu não havia esquecido que aquilo era uma mistura de água, gases e partículas que refletiam a luz. Mas se, recém saído do cubo, eu achara o céu lindo, agora achava... arrebatador. 

Foi também a primeira vez que comecei a conceber todas as limitações que me foram impostas até então. Embora eu quisesse ser Alguém desde o momento em que percebi que era possível, entendi que ser Alguém potencialmente me permitiria ver mais do que um pôr-do-sol lindo, mas solitário. A solidão só podia ser algo inerente a Ninguém. Alguém não podia ser só, Alguém tinha escolhas e lidava com elas, sobrevivera a elas. 

Mais do que todas as conclusões que cheguei a respeito de estar ou não só, foi que Alguém certamente não teria paredes de quadradas iguais que o limitassem, Alguém tinha uma liberdade que, concebi, talvez não fosse tão terrível como eu havia precocemente concluí que era. Porque, se eu fosse Alguém, jamais colocaria um ser tão cheio de vida como Enne, ou como todos os Ninguéns que vi perder aquela centelha, diante da morte. Alguém, podia escolher, então porque escolhia aquilo?

E todas essas perguntas, muitas delas levadas a se desenvolverem por causa de uma fêmea pequena de voz sussurrada, não me impediam de querer ser Alguém, pelo contrário, me motivavam. 

Foi naquele canto no alto da montanha, com a cabeça cheia de questionamentos e deslumbre que vi o primeiro homo sapiens desde que estava sozinho novamente,  correndo na parte quase descampada que separava a floresta das montanhas. Era um ponto preto e ágil, esguio e magro, talvez não o tivesse visto se o sol estivesse completamente posto, mas sua sombra se alongava no entardecer. 

Peguei meu fuzil, sem desprender os olhos daquele movimento contínuo. Acoplei o silenciador e a mira com movimentos calculados. O tremor já havia me abandonado há alguns dias, junto com ele a hesitação, o acelerar do coração, os dedos suados.

Desconhecidos #EFCWWhere stories live. Discover now