Capítulo 8

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A sensação de contentamento quando vem junto de tristeza é paradoxal, ainda que real; além disso, não eram só essas sensações que me povoavam. Eu estava também aliviado e angustiado.

Saí das construções meio agachado, uma mochila carregada competia com as duas bandoleiras que seguravam os fuzis, tilintando cada vez que eu me movia. Tinha trocado de roupa e deixado para trás a parte de cima, com manchas vermelhas de amora que me lembraram sangue. Vesti outra no lugar.

Estava limpo e bem abastecido, frutas secas, bebidas energéticas e cápsulas que prometiam sanar a dor, juntaram-se às barras de proteína e ao cantil.

Parava de tantos em tantos metros, agachando-me em qualquer pedra ou árvore que provesse cobertura. Parcialmente escondido, via e ouvia. O ruído da vida ao meu redor era corrompido pelo da morte que acontecia por todo lugar. Para o meu alívio, nenhum próximo o suficiente.

Tinha andado quase dez quilômetros quando cruzei com o primeiro cadáver que não me dizia respeito. Era uma fêmea. Três marcas feitas com uma lâmina perfurante nas costas e uma escoriação na cabeça lisa. Supondo que todos nós levássemos a mesma quantidade de dias para completar todos os estágios, tínhamos o mesmo período de vida. E quanto era isso? Estávamos no começo dela ou no fim? A agonia de não saber. Quantos dias eu estava roubando?

Há respeito na morte ou só profanação?

Andar, andar e andar, não ter um rumo certo a seguir me preocupava. O céu começava novamente a mudar e eu sabia que tinha poucas horas de luz.

Caminhei mais um pouco, procurando um lugar escondido o suficiente para descansar, mas a paisagem parecia uma repetição sem fim de padrões, algumas árvores, folhas caídas, pedras aqui e ali. Parei, então, em um lugar que parecia tão bom quanto qualquer outro.

Estava exausto, mas cavei um buraco com as mãos, o suficiente para me encaixar. Até concluir já havia escurecido, com o satélite pouco iluminado pelo Sol, as estrelas brilhando na noite outonal. Deixei a mochila dentro do buraco e subi uma árvore alta próxima, apenas as armas tilintando a tiracolo.

Conforme prometera a aula quatrocentos e vinte e nove do quarto estágio, a Cruzeiro do Sul e a Escorpião chamejavam. Ótimo, estava no ocidente, ao sul, provavelmente próximo ao trópico. O inverno poderia ser frio, mas conseguiria sobreviver a ele.

Desci primeiro os olhos, apesar da beleza imensa que havia no céu.

Vastidão.

Vastidão era o que me aguardava ali. Parecia vazio até onde a vista alcançava, mas havia ali um sem-número de ninguéns. A fumaça começou a surgir em alguns lugares. Despropositados os que usavam o fogo, embora eventualmente pudesse se tornar algo a que eu precisasse recorrer. Não agora.

Eles seriam caçados? Ou seria uma armadilha?

Eu não caçaria agora, não faria armadilhas agora.

Precisava consolidar uma posição. Achar um lugar alto, próximo de água potável. Encontrar outros pontos onde pudesse haver caixas de provisões. Caçar, talvez. Tinha visto ratos-do-mato se escondendo e provavelmente haveria capivaras próximas ao rio por onde passei.

Desci. Mais uma vez enfiei-me no buraco e me cobri com um amontoado de folhas. Fechei os olhos, ainda desejando o cubo e o gás, ainda lembrando do corpo ensanguentado que deixara para trás.

Era o medo combustível ou ácido? Porque eu o sentia corroendo a minha cabeça, mantendo-me acordado, apesar da exaustão.

Por outro lado, era a primeira vez, em muito tempo, que me sentia lúcido. A loucura estava suprimida pelo desejo de sobrevivência? Talvez querer sobreviver fosse o real delírio.

Clareou sem que eu soubesse quando exatamente pegara no sono. Acordei assustado com o ruído de um primata endêmico em alguma das árvores próximas, um mico, ao que parecia. Definitivamente melhor do que acordar com o barulho dos abutres.

Levantei-me. Seria mais um dia de Ninguém.

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Desconhecidos #EFCWWhere stories live. Discover now