Capítulo 23 - Ninguém

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Queria ter perdido a noção do tempo, mas sabia que havia passado duzentos e vinte e sete minutos e quarenta e dois segundos, o fim da tarde já se aproximando. O Sol à Oeste já havia mudado sua coloração, prenunciando que o dia logo findaria.

Fui o mais inútil dos incompetentes nas últimas horas. O torpor do que tinha acontecido se assomando. Senti meu coração ficar pequeno e bater em um ritmo frenético e estranho, senti o ar faltar e a insignificância da minha existência. Senti que morrer podia ser, afinal, o maior e único propósito. 

Andei a esmo, circundei o corpo da fêmea diversas vezes, sem saber o que fazer ou se deveria fazer algo. Não sei se gritei ou sussurrei as possibilidades de seu nome.

Fiquei na beira do precipício. Literal e figurativamente. Em algum momento meus pés estavam na borda. Bem na borda. O ar preso no peito, enquanto os olhos oscilavam: fitavam a imensa queda abaixo, fitavam o imenso horizonte adiante. 

Nunca tinha entendido muito bem figuras de linguagem ou a necessidade delas. Lembro da aula duzentos e quarenta e sete do quarto estágio que falava sobre metáforas, qual o sentido de metáforas em um mundo que preza a Realidade? A Competência? Engraçado que a tela na verdade seja tão falaciosa em seus ensinamentos. É engraçado que mais uma vez eu veja a falácia na tela. Mais uma imperfeição em algo que deveria ser absolutamente perfeito. 

Estar a beira da completa loucura podia ser libertador. Uma liberdade diferente daquela pequena dose que havia recebido com a saída do cubo. Não ter limitação para os meus pensamentos, não ter um padrão. Não querer estar dentro de um padrão quando isso podia significar algo tão... errado.

Fiquei ali, sentindo o vento forte no rosto, pensando que poderiam me ver, que um único tiro certeiro acabaria com qualquer dúvida, mas que não queria ser eu a dar aquele tiro. A queda, por outro lado, parecia-me mais interessante. O instante de libertação que viria antes do vazio. Sentir algo que fosse absolutamente real. 

Ouvi um tiro, não me acertou, infelizmente. Era o som característico da M4. Podia ser a Enne desta vez. Podia ter sentido os pés tremularem, podia ter me desequilibrado com o som ou a revoada dos pássaros, mas me mantive firme como se meu corpo se recusasse a cair. O estrondo viera da direção do acampamento. Um único estampido distante. 

O formato côncavo onde a base da montanha se formava não permitia que eu visse o objetivo do tiro, talvez fosse no vale, talvez estivesse perto...

Pensei em voltar, encontrar Enne, um ponto de lucidez, reencontrar aquela centelha de vida que se mantinha acesa e vigorosa em seus olhos. Encontrar nela um motivo novamente. 

Pensei em me jogar e acabar com aquilo de uma vez. 

A decisão definitiva, sem voltas.

Sem alternativas.

Só solidão. 

Medo.

Exaustão.

Morte, morte, morte, tantas vezes.

Sobrevivência.

E... vazio.

Vazio era o que eu sentia ou o que eu não sentia. A ausência era o que me incomodava antes, ter preenchido essa ausência com o horror do que vira nas últimas horas havia sido um choque do qual eu não queria me recuperar. Saber que algo é errado, mesmo sem ter parâmetros, é o que me torna Alguém? Ou é o que me torna Ninguém?

Não saber, só sentir. Sentir no fundo do meu âmago que não queria ser Alguém, que eles não eram bons o bastante, ainda que não fosse uma questão de bondade. Sentir que morto também não seria bom o bastante para mais Ninguém e que poderia ser bom, poderia mudar tudo aquilo, não?

Estava cansado daquelas dúvidas. De querer e não querer, e saber e não saber... tudo aquilo não tinha um objetivo prático... era simples despropósito. E eu que sempre me orgulhei de ser tão propositado, quão errado havia sido meu julgamento.

Não voltaria para Enne. Não ainda... Talvez no fim.

Saí da beira do precipício, enchi meu cantil em uma das inúmeras piscinas naturais daquela água límpida e belíssima que se ramificava por toda a montanha. O som da água, de todos que ouvira até então, era o seu favorito. Do rugido do rio, feroz e implacável, das gotas serenas que pingavam aqui e ali, do correr suave das nascentes, do choque das quedas d'água, formavam todos algo como... música.

Abastecido, quase que desnecessariamente devido à abundância ao meu redor, segui meu caminho. Andei sem descansar, andei sem ter cuidado e sem parar, comendo e bebendo o suficiente. Havia caminhado por mais duas horas, o ambiente já escuro a minha volta, quando encontrei um rastro. Pulei uma armadilha muito engenhosa, mas bastante óbvia, feita com cordas e gravetos, em alguns pontos tinham granadas onde meu peso teria retirado os pinos e feito muito alarde. 

Quase fui pego na segunda leva de armadilhas, quando talvez outro homo sapiens teria sido suficientemente incompetente para baixar a guarda. A terceira confesso que achei um exagero. Minas terrestres encavadas em um perímetro bem delimitado em volta de um conjunto de rochas altas, os pontos onde podia pisar, no entanto, já estavam bem demarcados pelos dias seguidos de uso. Ainda assim avancei com cuidado, até ter uma posição limpa para um tiro.

Era um macho. Estava deitado de barriga para cima com uma camiseta branca impressionantemente limpa, era possível notar mesmo na noite iluminada pelo luar. Seu rosto estava completamente sem pelos e os braços cruzados no peito musculoso, o ar subindo e descendo em um ritmo regular. Crispei os lábios com o fuzil nas mãos. 

Hesitei.

Atirei. Recolhi de seus pertences o que podia me ajudar. Um silenciador entre eles e mais uma leva de granadas pesadas, algumas de fumaça.

Continuei, sem dormir e sem parar. 

A próxima estava acordada, latas e latas de bebida energética, seringas e adesivos se espalhavam ao redor dela. Um olhar alucinado em seu rosto doentio. Ela atirou em mim, mas os projéteis passaram longe, ricocheteando pelas pedras além. Ela não conseguiu recarregar a arma, quando seus gritos foram interrompidos pela minha.

Seguindo o seu exemplo, tomei um dos energizantes e segui. Estava disposto a continuar o quanto aguentasse. Não sabia quantos tinha ainda para caçar. Não sabia quantas vezes mais questionaria meus pensamentos, minhas atitudes, minha loucura. A única conclusão que chegara é que as respostas ainda estariam adiante, junto com mais perguntas sem fim. Eu nada podia fazer como Ninguém, talvez com um nome, pudesse fazer mais do que ter respostas, poderia mudar as perguntas que eram feitas.

O que eu sabia era quem eu não era e o que eu não me tornaria. E talvez isso bastasse.

Desconhecidos #EFCWHikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin