Capítulo 22 - Enne

269 54 5
                                    

Enne


Acordei disposta a procurar Leo. 

Mudei de ideia antes que o sol se movesse um quarto no horizonte. Na metade do dia, estava indecisa novamente. Não havia escutado um único tiro durante toda a manhã; o que devia ser improvável, considerando como as barreiras que os mantinham unidos se afunilavam.

Tentou imaginar o mérito de programarem aquele estranho campo de força formar um longo corredor que circundava toda a área. Não seria muito mais fácil aglutiná-los em um raio menor? Mesmo o vale sendo mais aberto e estéril, não conseguia conceber o real motivo por trás daquilo. Não que importasse de fato.

Estava circundado o chão da caverna, enquanto roía as unhas compridas, tentando me decidir, quando fui surpreendida por dois estampidos seguidos, vindos da mesma direção dos tiros do dia anterior. Leo? Possível, mas não tinha como ter certeza.

Se fosse ele, tinha deixado seu acampamento, aumentando as chances de alguém chegar à base da montanha, deixando nossas localizações abertas para um possível ataque. Ao mesmo tempo, não caçar quem quer que tivesse saído vitorioso do dia anterior também era um risco. 

"Vitorioso". Repreendi meus pensamentos em deboche. "Como se aquilo fosse um jogo".

Decidi subir até o pico e ver se havia qualquer tentativa de atravessar o vale. Se houvesse, garantiria que não passasse de tentativa. Minha mira não era de tamanha distância como aquela que Leo havia tentado esconder de mim, mas ia funcionar. Fiquei brevemente desapontada com ele, quando a vi, enquanto deixava os medicamentos para seu pulmão na mochila, mas por fim me conformei que sua atitude era compreensível. Questionável, sim, mas compreensível. Eu mesma guardara um bom binóculo com visão noturna. "Confiança não era construída da noite para o dia" pensei e senti meus lábios se curvarem em um canto. 

Peguei minha mochila imensa e pesada, mesmo com os meus músculos cuidadosamente moldados e meu corpo melhorado ainda era penoso, olhei a caverna uma última vez, dançando em meus pés ao rodar. 

Era algo belo em sua rusticidade, talvez ainda mais belo por isso. Não veria mais a entrada côncava e escondida, com a nesga de sol que entrava, refletindo a pedra da montanha. Não ouviria o gotejar insistente que formavam estalactites ou o lago subterrâneo, um espelho de profundo de águas escuras e insondáveis. Não sentiria aquele cheiro característico de umidade selvagem, natureza e minérios, que só sentira ali, desde que a jornada fora do cubo começara.

Tinha aproveitado tão pouco de tudo aquilo, mas agora parecia inapropriado ter esse tipo de pensamento. Sua vida não era sua, nunca fora. Tinha menos escolhas do que os outros homo sapiens que estavam ali. A ilusão da liberdade não passava disso, mera ilusão.

Suspirei e segui adiante, como devia fazer.


A volta para o pico foi breve. O sol a pino me fazia estreitar os olhos, principalmente após ter passado tanto tempo no breu da caverna, quando saía somente uma vez ao dia para verificar a barreira e outras necessidades que mantinha cuidadosamente longe do acampamento.

Deitei de bruços na parte mais plana que consegui encontrar, as pequenas pedras pinicando meu tronco. Mesmo com os olhos entreabertos e daquela distância era possível enxergar os pontos pretos que circundavam o céu em diversos pontos no decorrer do vale. Os abutres acompanhavam o círculo de morte, denunciando a carnificina. Era uma visão aterradora e também um alerta. Fiquem longe, eles diziam. Como se houvesse qualquer possibilidade de terem essa escolha.

Peguei o binóculo e busquei atentamente por toda aquela extensão, até onde as árvores voltavam a ficar mais densas, mas não avistei nenhuma movimentação. Depois de tantos tiros e ao ver tantos corpos, qualquer homo sapiens com algum mérito ficaria do outro lado, esperando o melhor momento para sua última manobra. Aquele ato desesperado que os últimos sobreviventes terão que ter irremediavelmente. É claro que eles ainda não sabiam disso.

Procurei sinais de Leo onde sabia que ele devia estar, sem ainda estar pronta para procurá-lo. Sem saber se devia.

Lembrei da primeira vez que ouvira as vozes na cabeça. A tela ainda havia ensinado a diferenciar os sinais de loucura, era muito pequena, mas não precisei das aulas para pensar que estava louca. Falei por dias com a voz em minha cabeça, gritei por ela quando sumiu, até aprender a se controlar. Quase fui descartada como incompetente.

Sorri ao me lembrar. Talvez minha sanidade se deva às variadas vozes que ouvi. Claro que logo percebi que não estava louca, embora por vezes desejasse que fosse assim. Principalmente quando voltava de alguma modificação, lembrando de tudo: das dores, do medo, dos dispositivos, das pessoas. Desejei morrer vezes sem conta, mas fui uma boa menina. Como ouvi tantas vezes.

Fui preparada para matar, para sobreviver, para fingir. Bufei. Leo não teria chance de alcançar o que eu poderia sem saber tudo o que sabia. 

Pela Natureza! Eu nem sabia se ele quereria fazer qualquer coisa. O que ela sabia dele, realmente? Sim, recebera um ato de gentileza. O único do qual podia lembrar em toda a minha vida. Sim, ele a salvara da morte, mas... mas...

Estava difícil conseguir argumentos contra Leo. Pensei nos a favor.

Ele contemplava tudo de uma maneira que eu não podia, absorvendo cada detalhes a sua volta com um ar de deslumbramento e surpresa. Leo desviava das flores e insetos que cruzava pelo caminho, sem ao menos perceber que fazia isso. Ele não era completamente inocente, é claro que não, mas havia incutido em seus menores hábitos uma valorização pela vida que em mim não havia.

 Era mais do que isso, tinha que admitir. Seu sorriso reprimido, todas as vezes que ele desviava o olhar. A forma como se sentia desesperado em cada atitude, um desespero bom, se é que isso fazia qualquer sentido. E, por fim, Leo tinha os olhos mais honestos e quentes do mundo. Ri alto com a obtusidade e o demérito dos meus pensamentos, sem me preocupar em ser ouvida. Apesar de estar de certa de nunca ter havido demérito mais realista do que aquele.

Estava na mesma posição, com pequenas variações, já há algum tempo, horas, supus, quando notei uma movimentação. Nunca fui tão competente nas simulações de tiros de longa distância com tantas variáveis a considerar. Talvez por isso afinal tenha sido direcionada para habilidades médicas, mas teria que servir.

Foquei o binóculo e ampliei o zoom para ter uma visão mais apurada, antes de pegar o fuzil para atirar. 

— Está de brincadeira — murmurei sem me conter.

Sem despregar os olhos do binóculo acompanhei enquanto aquele que eu sabia ser um macho corria a toda pelo vale. Suas pernas eram poderosas, seu rosto estava concentrado. Parte de sua roupa estava rasgada em sua costela, do lado direito, mostrando sua pele escura. Uma réplica maior daquela que eu mesma vestia.

Senti o estômago congelar, enquanto fechava os olhos, divida com o que devia estar pensando. Todos as suas ideias com Leo esvaindo de sua mente. Em um ato desmedido peguei o fuzil e apoiou em seu ombro, acompanhando os passos velozes do macho. Engatilhei a munição, prendi a respiração, os olhos na mira. 

Dei uma saraivada.

Errei.

Pegaram nas pedras e na terra, alguns passos diante dele, que não parou de correr, mesmo quando procurava com atenção de onde viera o tiro. A direção que ele tomava agora era imprevisível, concentrando-se em escapar de novas tentativas.

Respirei fundo, guardando o fuzil.

Ninguém 4X27D008. Sim, só podia ser ele. E parecia bem vivo para mim. 

Desconhecidos #EFCWOnde histórias criam vida. Descubra agora