Capítulo 9

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Mais seis dias se passaram, ou oito mil, seiscentos e quarenta minutos ou setenta e dois quilômetros, ou quatro mortes. Eu ainda não sabia como deveria estar contando.

Depois dos sete mil, seiscentos e setenta dias passados no cubo, imaginei, de maneira muito limitada, tudo que poderia haver fora do dele. Havia armas, havia comida, havia água, e animais e plantas e estrelas e ainda outras categorizações sem fim, cuidadosamente dispostas na minha mente insana, apresentadas dia após dia.

Houve perguntas, silenciadas, quase todas elas.

Por quem?

Alguém?

Pela tela? Pela tela...

Essas ainda estavam na minha cabeça. Estaria nas dos seis homo sapiens que já havia matado? Estaria em todos os outros que estavam à espreita?

Os tiros diminuíram nos últimos dias. Eram mais esparsos. Mais distantes. Não ouvia novos passos, embora sonhasse com eles. Sonhava também com sangue, com a faca que roubei do terceiro que matei, com as lágrimas de dor que escorreram dos olhos da quarta, de como o quinto lutou, uma das balas me acertando de raspão no braço, enquanto me escondia em uma pequena construção. A sede que senti após ser baleado, sem água no cantil.

Mas o que mais me assombrava era ter bebido o sangue da sexta, a sede me massacrando. Só instantes depois vi que ela tinha um vasilhame fechado com água. Não tenho nenhuma memória de seu rosto, mas lembro dos uivos animalescos do meu choro, de pedir pela morte, que me escutassem, que acabassem com o Ninguém capaz daquela atrocidade.

Homo sapiens era uma falácia. Agora sabia disso. A maior de todas as falácias.

A noite se dispôs a me esconder. No quarto dia, insone, lágrimas que me assombravam, saí do meu buraco e passei a andar. A tranquilidade foi o que me convencera a adquirir o hábito noturno. Além disso, as noites frias do outono eram aquecidas pelos meus passos. O medo de ser surpreendido e assassinado enquanto dormia, sono a pino, diminuía à medida que ia mais e mais longe para o sul.

Ainda não tinha visto nada que indicasse um limite ou nenhum lugar onde valesse a pena estabelecer acampamento. Passara por um lago, onde abasteci o cantil e o vasilhame. Matei ainda uma capivara. Foi um desastre, sua carne era dura e estranha ao meu paladar, mas seu pelo baixo sempre secava ao sol a uma distância segura, enquanto eu dormia, torcendo para que fosse o suficiente para se transformar em uma pele usável para os dias frios, sem produtos químicos que ajudassem no processo. Ajudaria a aquecer o inverno.

Andava, acompanhado dos sons orquestrados com assustadora precisão pela escuridão, quando notei a trilha. Estava disfarçada, podia ver. Algumas vezes parecia andar em círculo, dobrar um galho de uma maneira bastante visível, com uma pegada demarcada apontando para a direção oposta. Um truque que eu mesmo usara para tentar escapar do quinto. Fora com ele que aprendera como fazer isso direito, um professor melhor do que a tela.

O sapato estava grande, provavelmente era uma fêmea. Estava mancando, mas não sangrava. Pelo menos não deixara rastros de sangue para trás.

Segui-la ou seguir o meu caminho, aquele que eu sequer tinha? Só andar e andar, procurar, sobreviver.

Decidi por encontrá-la. Estranha, essa nova vida de opções. Foi tão fácil que fiquei na dúvida se era uma armadilha ou se ela era realmente ruim em se esconder. Talvez... talvez eu estivesse ficando realmente bom em encontrar.

"Despropósito, ela é tão pequena!"

Escondida em concha entre as raízes de uma árvore, ela ressonava. Agachei para estudá-la. Estava perto, talvez perto demais, a arma, contudo, estava carregada e a postos.

Suas roupas eram diferentes de qualquer uma que tinha visto até então. Negras e justas, pareciam se misturar com a textura da madeira. Seus pelos já despontavam na cabeça, eram escuros e formavam um contraste com a pele clara. Tinha um nariz pequeno e pontudo em seu rosto de proporções simétricas, seu lábio estava rachado e havia sombras escuras em volta dos olhos. Desidratada, concluí. De todas as formas, parecia muito diferente do reflexo que eu tinha visto no vidro.

Matá-la seria muito fácil, ainda que difícil. Aquele pensamento que ainda me assombrava. Assombraria sempre? Do que eu me lembraria dela? Dos lábios entreabertos? Da pequenez? De escolher a faca? De limpá-la depois?

— Mate-me ou deixe-me.

Lembraria do sussurro que seus lábios formaram, sem sequer abrir os olhos? De não a matar?

Seu coração estaria tão acelerado quanto o meu?

Tinha recebido esse presente uma vez, era justo passá-lo adiante, além disso, metade da noite já tinha passado, se andasse rápido, estabeleceria uma distância segura.

Afastei meus pés com cuidado, um a um para trás, a arma em riste.

Peguei o vasilhame, tomei metade da água em três goles longos, e deixei o restante ali, bem diante dela.

— Lembre-se de mim, o Ninguém que escolheu deixá-la viver. — Sussurrei de volta.

Redenção? Era isso o que eu queria?

Virei-me. Corri.

"Lembrarei de não ter visto seus olhos abertos, cheios de vida." Pensei afinal.

Covarde, torci para que alguém a matasse. Ainda queria ser Alguém.

Desconhecidos #EFCWUnde poveștirile trăiesc. Descoperă acum