Capítulo 17

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Meus passos velozes subiam a montanha, o som baixo não ecoava. Plac, plac, plac, plac. Eram mais sutis que o tilintar das armas. Plin, plin, plin, plin.

Esses ruídos não eram os únicos que me acompanhavam. Não, eu estava mais acompanhado do que havia estado durante a maior parte de minha vida — pelos pingos de água das fontes, os pássaros que voavam baixo por ali, o farfalhar de algum bicho, o arrastar de outro. — Nada do tom, que eu descobrira ser, monotemático da tela. Nada dos fenômenos acústicos artificiais das simulações. Os mesmos que um dia haviam sido tão reais e agora, eu sabia, era somente uma cópia infiel.

O som, contudo, que aos meus ouvidos se sobressaía em relação a todos os outros, era o da respiração, cuja chiadeira veio escoltada por um peso sinistro nos pulmões. A minha temperatura, estranhamente elevada, não ajudava.

Mais e mais ofegante, diminuí o ritmo. Um barulho, que me lembrava do esguicho de um roedor morrendo, saía de mim cada vez que expirava. É estranho que no primeiro dia fora do cubo eu tenha achado que a angústia que eu havia sentido, a respiração entrecortada, o coração acelerado, eram a morte.

A morte não é tão gentil.

Logo buscava o ar em desespero, a boca aberta, os olhos arregalados, acompanhados de acessos de tosses poderosos. Mais uma vez — foram quantas, três, quatro? — eu caí de joelhos, desta vez meus braços me acompanharam, notei as mãos avermelhadas, quase roxas, e engatinhei tentando prosseguir, tentando respirar.

"Enne me envenenara?"

Os sintomas de loucura descritos pela tela estavam errados. Era possível rir o riso dos loucos, ainda que houvesse propósito. Mais uma falácia do dispositivo. Quantas mais haveria?

Se fosse isso, eu podia odiá-la, afinal.

Abri minha mochila com a sofreguidão permitida pelas mãos trêmulas; buscando algo dentro daquelas cápsulas que pudesse me ajudar. A mente embotada, a visão turva, enquanto eu sugava o ar e o meus pulmões se recusavam a reagir apropriadamente.

É engraçado como a memória de um homo sapiens funciona. Mesmo quando alterada, às vezes, tudo o que ela precisa, é de um gatilho.

Eu sentia meu corpo menor, mais frágil. Estava no primeiro estágio. Era tão... pequeno. Ainda não sabia nada de propósitos.

O mais surpreendente, no entanto, é que não estava no cubo. Era uma sala grande com pé direito alto e paredes imaculadas, exceto por um vidro espelhado que estava imediatamente a minha frente. Sentia o corpo recostado em um dispositivo anatômico branco que envolvia meu corpo infantil, as mãos pequenas presas.

Eu puxava o ar em assobios.

Ouvi o som da tela, reconfortante e assustador, mas não era a tela que falava.

Não era também um homo sapiens, embora tivesse uma forma humanoide. Não tinha pelos. Um rosto livre de expressões, sem narinas, bolas negras em seus olhos, furos no lugar de ouvidos. A boca estreita e sem lábios. Isso era ser Alguém?

"Ninguém 4X25A236, diagnosticado com broncoespasmo severo, avaliação para encerramento do estágio em curso."

A tela, que não era a tela, tinha uma voz feminina e suave, perfeita. Irreal? Posicionada bem diante de mim, com os membros superiores cuidadosamente estáticos ao meu lado, aquele olhar vazio analisava.

"Setenta e oito ponto três por cento de chance de desenvolver outras complicações respiratórias. Quarenta e dois por cento de possibilidade de apresentar fibrose pulmonar no sétimo estágio. Sugiro finalização."

A resposta não veio da tela, veio além do vidro e de todos os lugares.

— A genética do espécime não predispõe falhas e mostra um parâmetro de noventa e cinco ponto oito por cento de competência. Sugestão de finalização declinada. Administre corticoide e Nano XC.

"Entendido. Administração de medicamento e Nano XC será iniciada em vinte e sete segundos."

Ela retirou dois adesivos de aparência gelatinosa, um transparente e o outro avermelhado. Aplicou o os dois em meu peito nu, um ao lado do outro. O transparente foi absorvido imediatamente.

Minha respiração curta foi espaçando gradualmente, sentindo o alívio.

— Obrigado — sussurrei naquela voz aguda e infantilizada.

Ela inclinou a cabeça.

"Seu agradecimento não é necessário."

— Aplique Amnico5. Faça os exames de praxe e o devolva ao Centro 4.

"Entendido."

Um envelope de cinco centímetros quadrados jazia em minhas mãos com as pontas dos dedos arroxeadas, Nano XC escrito em letras pequenas e pretas. Retirei o colete e levantei a blusa, grudando o adesivo em meu peito, rememorando a sensação dos meus pulmões descomprimirem.

Encontrei corticoide em cápsulas e tomei uma delas, sem saber ao certo o quanto daquilo devia tomar. Notei também um antitérmico. Havia sido despropositado em não procurá-lo antes. A ausência de Enne me afetando mais do que eu podia admitir.

A fêmea não havia me envenenado. Queria odiá-la, rão por que meu rosto estava acompanhado por um sorriso?

E tinha uma falha, embora fosse potencialmente competente. Deitei, rolando no chão, enquanto olhava para o céu azul sem nuvens. Aquela área quase não tinha árvores, mas pequenas piscinas de água doce despontavam em todas as direções.

Lembrava de seu octogésimo vigésimo quarto dia do primeiro estágio quando comecei a me cansar e ter falta de ar. Daquela, como em inúmeras (ou duzentas e trinta e três) ocasiões posteriores o gás me derrubou, acordando, como sempre, com a sensação nauseante a qual jamais se acostumara.

Nunca se lembrava do que acontecia quando apagava, mas agora, pela primeira vez, tinha uma pista. A tela ganhara uma forma diferente, que não um retângulo de vinte e sete polegadas, parecia tecnológico, embora seu toque tenha sido macio, nada semelhante ao que se lembrava dos dispositivos das simulações. E havia Alguém lá, com a voz grave, masculina, mais real do que a tela, com um timbre correto, mas não perfeito.

Suspirei. Respirei fundo, aproveitando a sensação livre de angústia dos pulmões expandirem adequadamente.

Esperava encontrar respostas, mas só me deparava com perguntas e mais perguntas. Se continuasse assim, seria como Enne.

Talvez isso fosse algo bom.

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