Capítulo 14

347 65 41
                                    

— Quanto você acha que percorreu até aqui, desde o início? 

Corríamos ofegantes há uma hora, estávamos quase no sopé da cadeia de montanhas. Teríamos demorado um terço do dia para percorrermos a mesma distância. O incêndio de Enne diminuíra nossas escolhas a uma única: nos distanciarmos o quanto fosse possível dos nossos próximos perseguidores. A dúvida não era se viriam, era quando, como e quantos.

As perguntas de Enne estavam começando a ficar catalogadas em minha mente entre propositadas, despropositadas e completamente malucas. Essa estava na última.

— Descontando quando fui para o Norte, percorri trezentos e quarenta e sete quilômetros para o sul. Até chegarmos ao destino estimo que teremos percorrido trezentos e sessenta quilômetros — parei por um instante  — e trinta metros. A julgar pelas montanhas, supondo que elas sejam o fator limitador da área, estava a 10 quilômetros do centro, ou seja, há um raio de trezentos e cinquenta quil...

— Como você sabe exatamente o quanto percorreu?— Ela perguntou impressionada o tom de voz ligeiramente mais alto e mais agudo do que de costume.

Desacelerei até parar, os dedos dos pés em prega para me equilibrar no terreno acidentado, cheio de pedras pequeninhas e gravetos. Enne parou em seguida, olhando para trás e se virando, a paisagem grandiosa atrás dela era um recorte da sua pequenez. Sua expressão era de questionamento, a minha, eu podia dizer, espelhava a dela, mas era também uma mistura de choque. Éramos diferentes. Não só uma questão fisiológica, macho ou fêmea, éramos diferentes de maneiras primordiais que eu não entendia. Entenderia um dia?

— Como você não sabe?

Silêncio. 

Silêncio quebrado por um bem-te-vi , então, por um araçari-banana e por patinhas pequenas de roedores à distância. 

— Um homo sapiens deveria saber disso? 

Foi a vez dela perguntar. Mais uma daquelas, propositadas e perturbadoras. 

Eu sou Ninguém e, como Ninguém, deveria saber? Sem saber o que sei, ainda seria Ninguém? Quem é Alguém, o que Alguém sabe? Essas perguntas voltaram a me bombardear em um instante. Se Enne não calculava, não media, o que ela sabia além de mim e o que mais eu sabia além dela. Tantos saberes, uma anáfora. Seria eu um poeta?

Silêncio.

Silêncio quebrado pelo ruir do vento, de um fim de tarde do outono que estava se tornando inverno. Nossas sombras alongadas não faziam barulho, mas bem que podiam, talvez fosse o que precisássemos. Minha loucura, companheira, estava aqui.

Era possível sentir somente vazio? Era possível estar morto, ainda que vivo? 

Meu coração pulou uma batida, os braços estavam arrepiados. A enormidade da ignorância me assoberbando. 

Eu não tinha uma resposta. Enne também não. 

— Precisamos continuar — ela disse, olhando além de mim.

— Precisamos?— Gaguejei, a garganta travada, o ar não parecia chegar aos pulmões.

— Sim, precisamos — o tom impaciente, debochado, característico.

— Qual... o... propósito? — Explodi. O grito era estranhamente libertador. Ele veio com lágrimas nos olhos e o fraquejar das pernas. Veio com todas as perguntas sem respostas, todos os dias no cubo, todas as mortes dos últimos dias. Veio com o peso das armas, da comida, da água, do pingente redondo com uma folha estampada. Veio com e sem propósito. Eu me sentia exausto, de uma exaustão diferente. De uma exaustão que beirava o desistir.

Um macho caído, era isso que eu era. De joelhos diante da fêmea mais forte do mundo, eu tinha certeza. Em um instante ela estava há trinta e dois centímetros de mim, menos que um passo de uma fêmea adulta. Era o momento da minha morte?

Ela suspirou e ficou de cócoras com dificuldade, todo o volume que tinha atrapalhando o movimento. A fêmea pegou meu rosto com firmeza com as duas mãos. O sangue seco de suas últimas vítimas estava rachando em sua face, em algumas partes escorria por conta do suor e emolduravam os olhos mais vivos que eu poderia um dia ver. Seu nome não poderia ser Coral, nem Pantera, nem Tempestade. Talvez não houvesse nenhum nome apropriado. Um nome deveria ser criado para Enne.

— Talvez ainda não haja propósito. Ou mérito. Só competência, como disse a tela. — Ela disse, muito perto, sem desviar o olhar nem por um instante. — Talvez haja todo o necessário para se tornar Alguém e encontrar seu propósito, afinal. E saber também as razões e as respostas. Não desista, Ninguém. Porque eu já teria morrido duas vezes, a primeira de sede, que você saciou, a segunda pelas mãos daquelas fêmeas. E talvez, talvez por fim eu morra. Mas você está vivo. Você será o melhor Alguém que a Meritocracia terá, porque você é solitário, mas gentil. Você é bom, quebrado, como todos nós, mas bom. O cubo não lhe tirou tudo. Não desista.

Enne terminou de falar e se levantou num rompante, correndo, seus pés levantavam poeira e cascalho. Ela não olhou para trás para conferir se eu a seguia. Talvez fosse confiança, talvez tivesse dado tudo o que tinha e agora a escolha era minha. Mais uma, mais uma vez.

A tela me deu um propósito. Enne me deu coragem e vontade para segui-lo. A tela, apesar de todos os seus ensinamentos, tinha ainda o que aprender.

Desconhecidos #EFCWWhere stories live. Discover now