Capítulo 25 - Ninguém

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Ninguém

A montanha despertou.

Foi a sensação que tive ao acordar, após três horas de sono. Dormi quando a neblina da madrugada já se adensara e, apesar do sol ainda baixo disputar por algumas frestas de luz, a névoa espessa estendia seus tentáculos e impedia-me de ver pouco além de três metros diante de mim. Em contrapartida, os aromas da montanha brincavam com aquela umidade, despertando meus sentidos em apreciação, de uma maneira que não pude desfrutar como devia nos últimos dias. Havia tido que deixar o deslumbramento das primeiras horas morrer com a necessidade de matar. 

Que despropósito!

Como pode tudo mudar em tão poucas horas?

O silêncio dos últimos dias, rompido principalmente pelo meu fuzil de longa distância, rapidamente se dissipou.

Os sons eram o que davam a ideia do terror que acontecia para todos os lados. A execução da competência. O espetáculo final? Esperava que sim. Tiros e bombas chegavam aos seus ouvidos, os mais distantes vinham do caminho que percorrera, aquele trecho estava limpo, afinal, pelo menos ali em cima na montanha. 

Quem quer que ainda estivesse vindo do vale, aquele provavelmente seria um bom momento para não ser acertado. 

Os parcos mantimentos que carregava me forçava a voltar, seria um despropósito seguir adiante com a quantidade de munição que dispunha. Mesmo tendo reforçado os pertences com pesadas granadas, ainda me faltariam projéteis.

Foi perturbador experimentar a insegurança, tanto que me contive para não seguir o caminho de onde os estampidos surgiam. Era diferente do medo ou da sensação de perigo. Era... não confiar em minha capacidade, era uma contração no estômago e uma sede que a água não saciava, era um frio sem motivo e um estremecer dos ombros. Era mais um sentimento para a lista daqueles que me acometiam.

A razoabilidade, inerente aos propósitos que sempre me guiaram, foi mais forte e, conferido todos os itens que me acompanhavam, talvez um traço da minha relutante insegurança, tomei a direção de onde vim, com os passos curtos de som abafado que exigia a neblina, mas espalhafatosos. Se devia ter a preocupação de ocultar minha passagem, não tive. Não mais.

Isso não significava, contudo, que não estava alerta. O fuzil em riste com a mira de curta distância ativada já estava aquecido nos trechos estreitos que encostavam em minha pele. As explosões por vezes mostravam um rastro de fogo e fumaça, que logo era engolido no horizonte pela névoa, não sendo suficientemente intensos para combatê-la, a água em abundância que vertia da montanha não contribuía para que o fogo se espalhasse.

Já havia caminhado por mais de três horas (ou três horas, vinte e nove minutos e quarenta e quatro segundos) quando a luz e o calor ameno do sol daquela estação, mesmo envolto em nuvens, previsíveis em seus papéis, finalmente venceram a batalha contra a névoa.

Era certo afirmar, no entanto, que não podia dizer o mesmo dos Homo Sapiens que lutavam por suas vidas. Embora os focos de embates tivessem diminuído, era possível agora ver fogo e fumaça. Os corpos no vale também tinham se acumulado, banhado em vermelho em alguns pontos, um verdadeiro tiro ao alvo em dois pontos da montanha, a julgar pelo som, nenhum dos quais consegui localizar.

Eu já tinha feito a minha parte no que tangia a matar aqueles que tentavam atravessar, mais do que isso, não seria  tolo ao delatar minha posição.

Desviava com cuidado dos obstáculos,  enquanto bebia e comia somente o necessário em sombras e arbustos, logo voltando para a postura alerta com o fuzil estendido à frente.

Subi mais a montanha, buscando esconder-me além do cume, fora da visão de qualquer um, naquele estranho espaço que parecia não ter fim. Embora houvesse. O verdadeiro confinamento. Aquela barreira estranha que avistara a primeira vez dias antes.

Não sabia o que esperar quando passasse o cume da montanha. Um penhasco? Um limbo negro? Água a perder de vista represada pela montanha?

Não esperava encontrar algo tecnológico.

A ponta do fuzil bateu sem produzir qualquer som na barreira transparente. Ela parecia líquida ao toque, embora não molhasse. Parecia maleável, embora tivesse uma dureza impressionante, considerando a força com que a testei. Granadas, descargas eletromagnéticas, armas de fogo, nada  abalara aquilo. Até os sons das granadas pareceram mais ocos ao explodirem, como se o som ali fosse absorvido por aquela estranha parede. Desistira, afinal. Voltara para o privilegiado local onde transformara em seu acampamento. Água próxima, um único caminho para chegar até ele, um perímetro bem delineado e perigosamente construído para ser mortal para qualquer desavisado, com um platô perfeitamente encoberto pela vegetação rasteira de onde havia abatido cada um daqueles que tentaram atravessar o vale desde que subira.

Quando senti o ambiente ficar mais denso, soube que estava bem próximo, embora só pudesse avistar aquela estática tomar forma alguns metros (ou sete) adiante. E soube, imediatamente, que ela estava estreitando. Diminuindo o espaço de seu confinamento, restringindo a área de espaço indeterminado estipulado pela tela.

Andou, beirando a barreira, em direção ao seu esconderijo, notou que o processo devia ter estado mais lento, com uma aceleração progressiva, forçando a seleção natural? Provavelmente.

Acelerei o passo para uma corrida leve em cada ponto que o terreno traiçoeiro me permitiu, a cacofonia diminuía, conforme as horas avançavam e a barreira também, lenta, mas claramente.

O meio da tarde havia chegado quando o ponto que devia tomar à nordeste a fim de descer a montanha chegara, não poderia adiar mais, de qualquer forma, ou ficaria exposto no cume, forçado pela restrição da área.

Agachado, circundei os pontos que aprendera a identificar muito bem, escondendo-me de qualquer aproximação, especialmente preocupado com abordagens do lado direito, aquele onde eu não havia estado, de onde eu corria um risco maior de ter algum Ninguém aparecendo de maneira bastante indesejada.

O vento fustigante zunia em meus ouvidos, castigando meus braços descobertos e me lembrando da manta e da pele de capivara. As preocupações que temos diante da morte deviam ser outras, mas a fisiologia tem o papel de cobrar suas devidas exigências e era nisso, e não em Enne, que estava pensando quando  finalmente cheguei em meu acampamento e a avistei, sentada na mesma pedra que ficara em muitos dias. Em um instante pude ver que seu cabelo crescera naqueles dias, que havia uma sombra em seus olhos que não estava ali antes.

E talvez... Talvez tenha sido o pequeno atraso no reflexo que tive ao avistá-la, que me impediu de ver o outro Ninguém errando o tiro à queima roupa em meu peito, quando ela mesma atirara no ombro dele. Um erro que eu sabia que ela não cometeria, a menos se não quisesse realmente matá-lo.

Eu vi sua expressão horrorizada, seguida de dúvida. Eu ouvi seu grito distante, bem diferente da voz rouca que minha memória insistia em lembrar, eu vi o Ninguém virar-se para ela com fúria e medo e dor e decepção, eu a vi sussurrar e erguer as mãos e eu o vi trocar a Scarelli, sua arma, de uma mão para a outra, a do ombro ileso, apontando para Enne em seguida. Enquanto o rosto da fêmea mais linda do mundo, eu sabia, se transformar em uma máscara de resignação, em alguém que ele jamais esperara ver, a expressão de quem desistira.

E, apesar do mundo sem som e em tons de sépia e luzes e borrão, apesar do gosto de sangue na boca, do corpo em espasmos, do joelho encontrando o chão, eu senti meu braço se erguer em um comando que eu esperava ser rápido o suficiente.

Uma rajada incontrolável saiu do fuzil, minhas mãos trêmulas. As articulações dos meus dedos pareciam ter perdido sua função. Senti ainda o outro joelho bater com força no chão, enquanto meu tronco parecia descoordenado, pesado demais. Tossi. Senti uma dor aguda se espalhar do meu... fígado...?

"Quanto frio..."

Meus dedos sujos de sangue...

"Morrer pode ser... misericordioso..."

"...Espero que Enne se torne Alguém."

Vazio.

Desconhecidos #EFCWWhere stories live. Discover now