Capítulo 5

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Decidi morrer.

Fiquei ali por horas, embora houvesse passado exatos três mil, quatrocentos e vinte e dois segundos – o tempo, claramente, não saberia bastar; despropositado, isso sim!

Era possível morrer da espera da morte?

Parecia improvável.

Essa improbabilidade resultou em angústia. Foi ela que me pegou, ou o cheiro, ou a fome, ou o barulho do grasnar e deglutir e bicar dos meus companheiros abutres. Ora, quando imaginava companhia além da tela, não era bem isso que eu tinha em mente.

Quantas formas há de morrer? Haveria, certamente, maneiras mais prováveis, mais rápidas ou ainda menos dolorosas do que aquela.

Arrastei-me para fora do buraco, o monte de raízes da grama que havia retirado no dia anterior, juntamente com a terra, mantinha-se em um montículo, exatamente onde deixara. Observei ao redor, os olhos arregalados e a cabeça baixa de quem quer enxergar tudo por cima da sobrancelha, a coragem de encarar o lugar me faltava. As árvores pareciam ainda mais altas, a vegetação rasteira e os cogumelos das raízes despontavam incessantes. Os pequenos insetos que corriam minha mão tinham entrado também embaixo das minhas roupas, a coceira me incomodando.

Bati em meu corpo para afastar os insetos e rolei um pouco no chão, a angústia me consumindo. Só então levantei, os músculos doloridos e o corpo gelado. Senti imediatamente tontura e achei que ia desmaiar, afinal, a exemplo do cadáver logo ali, morrer podia ser bastante fácil.

Faminto como estava, não me importei de ter que cruzar com o cadáver, embora estivesse sendo habilidoso em evitar que ele entrasse no meu campo de visão. Os abutres me olharam, ameaçadores, prontos para defender seu desjejum, mas eles não precisavam se preocupar, eu não estava assim tão desesperado, não com uma amoreira perfeitamente boa logo ali.

Comi o quanto pude. Tirei a peça de roupa que me cobria o tronco – era a menos imunda – e coloquei nela a maior quantidade de frutas que consegui. Não sabia quanto precisaria andar para achar qualquer outra coisa.

Tendo saciado a minha fome, meu problema passou a ser meu cheiro. Não sei se já estava assim no dia anterior – se estava, foi pelo olfato que me encontraram. Minha surpresa, na verdade, era que os abutres não me atacassem pensando que eu era o morto.

Ah, como sentia falta do meu kit de higiene diário, um pacote de dez lenços úmidos grandes o bastante para cobrir as palmas das minhas mãos abertas e o líquido limpador de dentes que sempre estavam lá quando eu acordava. Bem, exceto nas raras ocasiões em que eu não merecia, mas eu não era despropositado, afinal, aprendera muito bem como evitar essas situações.

Sabia também que precisaria de água logo, poderia até me lavar com ela. Senti um arrepio com a visualização do desperdício que seria, mas em um local como aquele, talvez houvesse água em abundância.

Conforme a aula trezentos e setenta e dois do terceiro ciclo, animais costumavam viver próximos de lugares com água ou buscá-las em ambientes selvagens – aquele obviamente era um ambiente selvagem, hostil e cruel.

Comecei a procurar pegadas de animais.

Não andei no mesmo passo do dia anterior, tentei ser rápido, dividido entre olhar para o céu à procura de pássaros grandes que também podiam buscar água potável. Estaquei subitamente com a minha estupidez. As árvores eram esparsas, não estava em uma mata fechada, mas eram altas e robustas, com galhos grossos que poderiam sustentar meu peso.

Escalei uma delas com grande esforço, apesar dos braços fortes, minhas mãos eram lisas e desacostumadas com a casca grossa. Ergui-me com dificuldade até chegar ao mais alto possível. Os galhos acima eram mais finos. Tive medo de cair.

Ri. Quem tem planos de morrer não deveria ter esse tipo de temor. Ouvi um ruído logo abaixo e me agachei, assustado, equilibrando-me em dois pés de uma maneira que não achava ser possível. Abracei o tronco da árvore o melhor que pude com um dos braços, enquanto o outro apoiava no galho, escondendo-me no meio das folhas pontudas que roçavam meu rosto. O estalar do galho me preocupava, ciente do risco latente de se partir.

Não demorei a encontrar a origem do ruído. Era um homo sapiens certamente, mas parecia diferente do outro. Um pouco mais baixo, uma protuberância no tronco, próxima aos pulmões. Espécime feminino, percebi. Estava limpa, ao menos mais limpa do que eu, o que talvez não fosse difícil. Suas roupas eram parecidas com as minhas, embora estivessem mais ajustadas, como se lhe coubesse melhor ou fosse do tamanho certo. Ela olhou para cima, diretamente para mim.

Fiquei paralisado, mas não de medo.

Era possível ser tanto em um olhar? E tendo tal olhar, poderia ainda ser Ninguém?

Seus lábios entreabertos em surpresa, foram substituídos por outra expressão. Uma que me peguei imitando. Um lado da boca levemente mais levantado que o outro. Ela notou o que eu fazia, arregalando os olhos, mas desviando o olhar, buscando algo ao seu redor. E eu soube. 

Sim, ela era Ninguém, assim como eu. Soube também que ela estava apavorada e, soube mais, estava fugindo. A fêmea começou a escalar a árvore que estava diante de mim com grande vigor, a motivação dela certamente era impressionante, enquanto a minha era somente a sede.

Por um momento seu braço falhou e eu quase gritei, mas se ela se manteve em silêncio, não seria eu a nos denunciar.

O tempo foi justo.

Ela estava segura quando um espécime masculino apareceu. Ele era maior que o anterior, bem maior. Cabeça sem cabelos e quadrada, sua pele era mais clara que a minha, muito pálida. E, apesar de minha curiosidade por ver, pelo segundo dia seguido, dois outros seres similares a mim, o que mais me chamou a atenção foi que ele tinha uma arma, uma M416, fuzil de assalto, preta, robusta, muito, muito, mortal.

Senti meu estômago congelar. O suor brotou de minha testa sem que eu tivesse feito qualquer movimento. Olhei a terra fofa com nossos passos perfeitamente demarcados. Ele nos acharia, era uma questão de tempo.

Olhei para a fêmea adiante, imaginando sua expressão de pavor. O que eu vi, contudo, foi determinação. Ela pulou exatos seis metros, seiscentos centímetros, 8 passos de um homo sapiens macho adulto, duzentas e trinta e seis polegadas, a distância entre os primeiros arbustos e as árvores mais altas, sem gritar, um soco armado em seu punho direito. O choque fez a mandíbula do outro tremer, uma saraivada de tiro desgovernado se fez ouvir. Eu não soube imediatamente se o macho estava morto ou desmaiado, mas no trajeto da descida ouvi um tiro certeiro ser desferido e qualquer dúvida que eu poderia ter morreu junto com o outro.

— Como você sobreviveu a essa altura? — Disse a título de apresentação. Quando se é Ninguém você diz primeiro quem é?

— Não sei, importa?

Sua voz era mais aguda que a minha, um pouco rouca, diferente, tão... estranha.

— Suponho que não.

— Como você não me denunciou, vou lhe dar uma chance de fugir.

— Obrigado?

— Espero que você morra antes de eu ter que lhe matar, você parece... decente.

— Humm... espero que sim, eu acho.

Ela correu, tinha sapatos melhores que os meus e parecia mais à vontade em suas roupas. Eu, por outro lado, parecia, de alguma forma, atrasado.

Retomei meu caminho silencioso à procura de água, com novos pensamentos na cabeça, mais coerentes, talvez.

Companhia, ser Alguém, merecimento. É o que eu teria se sobrevivesse.

E porque morrer parecia desinteressante demais, decidi viver.

Desconhecidos #EFCWOù les histoires vivent. Découvrez maintenant